Capítulo 4: O Universo e a Vida na Terra

Do livro “Interesse Próprio vs. Altruísmo na Era Global”

No final do capítulo anterior, nós dissemos que a quebra da alma de Adão é a nossa origem comum. Sendo um Partzuf, a estrutura de Adão era uma réplica perfeita de seu Partzuf pai (corrigido). Na quebra, Adão estendeu a estrutura dos mundos espirituais (mundos de doação) até seu ponto mais baixo — recepção definitiva.

Em consequência, tudo o que existe nos mundos espirituais também existe em nosso mundo. Por essa razão, o mesmo padrão de quatro estágios pelos quais os desejos evoluíram, seguido pelos quatro estágios de evolução dos mundos espirituais, existe em nosso mundo físico. Conforme exploramos como nosso mundo evoluiu, devemos ter em mente os desejos que o evocam e o guiam.

Nascimento e Queda de Adão

Do livro “Interesse Próprio vs. Altruísmo na Era Global”

Até agora, discutimos a origem da Criação. Explicamos como a Criação recebe o prazer que pode com a finalidade de doar, e se constrói para ser o mais semelhante possível ao seu Criador. Mesmo depois que todos os mundos foram criados no Partzuf (empresa) e todas as luzes que podem ser recebidas a fim de doar são recebidas no Partzuf, resta ainda um desejo que não pode ser posto para trabalhar no Partzuf ─ o desejo de ser como o Criador. Esse é o desejo a que o anfitrião, na alegoria de Ashlag, estava se referindo,  quando  disse  (Capítulo  2):  “Nesse  caso,  nunca  nasceu  uma  pessoa  que pudesse satisfazer os seus desejos.”66 Esse é o desejo mais intenso, o desejo central do Estágio Quatro e, ao mesmo tempo, absolutamente inatingível.

Assim, uma vez que todos os desejos foram explorados ao máximo, o departamento de marketing (luz circundante) da Criação (empresa), lembrou ao gerente da companhia ─  o Rosh (Cabeça) da Criação ─ que havia ainda mais luz a ser recebida. Agora era dever do Rosh analisar esse novo desejo e determinar se poderia recebê-lo com a intenção de doar.

Por essa razão, o Rosh convocou uma assembleia especial do conselho para discutir o destino desse último desejo. Nessa reunião, o argumento para não usá-lo era ser ele demasiado forte para se lidar. De fato, como se pode lidar com um desejo de ser como seu pai? Se o Partzuf realmente recebesse o que queria naquele desejo, seria como se uma criança se tornasse um adulto instantaneamente, sem o conhecimento e a experiência adquiridos ao longo dos anos de crescimento. É claro que seria muito complicado e perigoso lidar com tal desejo.

“Por outro lado”, argumentaram outros diretores, “se considerarmos a natureza desse desejo, vamos perceber que não pode haver qualquer perigo nele.” “De fato”, alegaram, “é à prova de erros.”

“Como assim?”, perguntaram os opositores. “É à prova de erros por causa da natureza do próprio desejo — ser como o Criador, um doador. Quão perigoso pode ser querer doar?”

Os defensores convenceram os opositores, e a decisão tomada foi de a Criação contratar o maior desejo — o desejo de ser como o Criador. Para fazer isso, a Criação construiu um Partzuf distinto, chamado Adam ha Rishon (O Primeiro Homem), e atribuiu a ele a tarefa de operar e gerenciar o desejo final e maior de todos.

A decisão de tentar receber o último e maior de todos os prazeres, no entanto, acabou  por se revelar um erro fatal. O que a Criação não sabia era que a luz maior, que vem com o maior desejo, tem um dom ligado a ela. Quando você se torna como o Criador, você se torna como o Criador no sentido pleno da palavra, não apenas no seu desejo de doar, mas também na sua capacidade de doar — para criar— você se torna onipotente e onisciente. Esse foi um prazer que a Criação não poderia receber com a intenção de doar.

Assim que Adão, o Partzuf especialmente concebido, começou a receber a luz, ele (Adão) descobriu os dons ligados à luz, e eles eram tão fascinantes que ele esqueceu completamente a intenção de doar.

E no minuto em que Adão começou a pensar dessa maneira, ele tentou agir para ser um criador. Para criar, porém, você precisa do desejo de doar, e Adão não o tinha. Isso despertou a inferioridade e a vergonha que foram cobertos pela Masach inicial no Estágio Quatro e, com isso, a luz desapareceu, tal como aconteceu durante a restrição.

O desejo de Adão, no entanto, não podia mais ser revertido; ele viu que  prazeres esperam por aqueles que se tornam como o Criador e não conseguiu esquecê-los. Por essa razão, Adão não podia ser posto para trabalhar a fim de doar, porque sabia que, se conseguisse encontrar uma  maneira de ser como o Criador, seria o único governante do universo, de toda a realidade. Assim, em seu cerne, Adão se tornou egoísta, cada parte sua desejando ser como o Criador. Em consequência, as partes egoístas se  desintegraram em miríades de frações, cada uma com seu próprio pequeno  desejo egoísta de se tornar como o Criador.

A fragmentação do Partzuf de Adão é conhecida como “a quebra da alma de Adão” ou, para encurtar, “a quebra da alma”. Com a fragmentação de Adão, uma nova entidade apareceu na realidade — uma entidade egoísta, cujo desejo é o de doar para si mesmo, em vez de para o Criador, e cujo último desejo é por onipotência e onisciência, ao invés de por total doação.

Na Cabalá, explica Baal HaSulam no “Prefácio à Sabedoria da Cabalá”, a diferença entre espiritualidade e corporeidade é que, no reino espiritual, não há desejo de receber sem um Masach, enquanto na realidade corporal só existe um desejo de receber sem Masach 67. Assim, nosso universo é o único reino corpóreo existente, e tudo o que existe em nosso universo é a descendência da quebra da alma de Adão.

A razão pela qual consideramos o nosso universo um “mundo”, o mesmo termo que atribuímos aos mundos espirituais, é que um “mundo” reflete certa medida de ocultação da luz. A única diferença entre nosso universo corpóreo e os mundos espirituais é que, num mundo espiritual, mesmo quando não há luz em tudo, ainda há consciência da qualidade de doação do Criador e o desejo de possuí-la. Em nosso universo, ocorre uma ocultação tão completa que sequer estamos conscientes do significado da palavra “Criador”, e pensamos nele como uma entidade (se não uma pessoa) que aguarda nossas súplicas, devolvendo-nos uma resposta misericordiosa.

Em hebraico, os seres humanos são chamados de Bnei Adam (os filhos de Adão). Na verdade, somos descendentes do erro de Adão e, portanto, apenas nós poderemos consertá-lo. Sendo a única espécie que pode escolher seu curso na vida, os seres humanos são os únicos que podem determinar o destino de toda a vida na Terra — para melhor ou para pior.

Como veremos nos próximos capítulos, reservada aos humanos, a Natureza como um todo obedece a uma regra que se alinha com as leis do mundo espiritual. Nós, por outro lado, devemos aprender a respeitar essa regra por nós mesmos. Ao desejarmos  a intenção de doar mais que a graça que vem da doação (onipotência e onisciência), nós poderemos consertar o erro de Adão. Ou seja, escolhendo a intenção de doar, o dom ainda continua ligado a ele e vamos continuar recebendo onipotência e onisciência. Se tivermos a intenção de doar, receberemos o dom de sermos semelhantes ao Criador, porque sabemos que, fazendo isso, estamos agradando ao Criador, que quer nos dar esse presente. Como resultado, vamos desfrutar a dádiva, mas não nos quebraremos — caindo no egocentrismo — como aconteceu da primeira vez. Esse será o fim da  correção para toda a humanidade, e a realização do propósito da Criação, como pretendido no pensamento do Criador da Criação.

No capítulo seguinte, iremos explorar a forma como a vida evoluiu no mundo corpóreo (físico) após a quebra de Adão, que partes da Criação já foram corrigidas e o que ainda aguarda nossa correção: escolher doar em vez de receber.

Nomes Paralelos

Do livro “Interesse Próprio vs. Altruísmo na Era Global”

Em “A Essência da Sabedoria da Cabalá”, Baal HaSulam explica que os mundos ABYA são todos muito semelhantes entre si: “Os Cabalistas descobriram que a forma dos  quatro mundos, chamados Atzilut, Beriá, Yetzirá e Assiyá, começando com o primeiro, mais elevado, chamado Atzilut, e terminando neste mundo corpóreo, tangível, chamado Assiyá, é exatamente o mesmo… Isso significa que tudo o que, eventualmente, ocorre no primeiro mundo, também é encontrado inalterado no próximo mundo. E assim ocorre igualmente em todos os mundos que o seguem, até este mundo tangível.

“Não há diferença entre eles, mas apenas um grau distinto, percebido na substância dos elementos da realidade em cada mundo. A substância dos elementos da realidade no primeiro, mundo Superior, é mais pura [mais doadora] que em todos os mundos abaixo dele, e a substância dos elementos da realidade do segundo mundo é mais grosseira [mais recebedora] do que a do primeiro mundo, porém mais pura que a dos graus inferiores.

“Isso continua da mesma maneira até este nosso mundo, cuja substância dos elementos é mais grosseira e mais escura que em todos os mundos precedentes [mais recebedora, até o ponto do egoísmo]. As formas e os elementos da realidade e todas as suas ocorrências, no entanto, vêm inalteradas e iguais em todos os mundos, tanto em quantidade quanto em qualidade.”60

Embora a Cabalá fale de desejos e não de objetos físicos, porque todos os mundos são praticamente idênticos, os Cabalistas costumam usar nomes de objetos ou processos do mundo físico para explicar os estados espirituais ou processos que ocorrem no nível dos desejos. Exemplos físicos são muito mais claros e tangíveis. O termo Partzuf  (Face), que discutimos acima, é um desses casos. Um exemplo mais “picante” seria Zivug de Hakaa (acoplamento por golpes), que é um nome em código para descrever todo o processo de rejeição da luz (o golpear) e depois a recepção (o acoplamento) de apenas a quantidade de luz que pode ser  recebida com o fim de outorgar.

Em conformidade, em sua “Introdução ao Livro do Zohar”, Ashlag explica que o nome “inanimado” foi dado ao mundo de Atzilut, porque consiste do desejo de receber no Estágio Um, que é completamente passivo61.

O equivalente corporal do mundo de Atzilut são os minerais. Todos os minerais se esforçam (desejam) manter sua forma. Eles não têm nenhum desejo de se tornar outra coisa senão o que eles já são; se você tentar mudá-los em outra coisa, terá de aplicar energia e manipulá-los, porque irão resistir à mudança.

Nas palavras de Ashlag, “o Estágio Um do desejo de receber, chamado ‘inanimado’, (…) é a manifestação inicial da vontade de receber neste mundo corpóreo. (…) nenhum movimento, porém, é aparente em seus itens particulares. (…) E já que há somente um pequeno desejo de receber (…) o seu poder sobre os itens particulares [minerais] é indistinguível”62.

Beriá recebeu o nome de “vegetativo”, já que é o começo de um desejo independente. Como o esperado, a manifestação material desse desejo são plantas. As plantas crescem, florescem e murcham, e cada planta é uma entidade distinta, ao contrário do  agregado de moléculas que forma os minerais. As plantas, no entanto, não têm livre escolha em seus movimentos. Quando as plantas de um certo tipo crescem em estreita proximidade, todas se comportam exatamente da mesma maneira. Por exemplo, a cabeça de qualquer girassol estará sempre virada para o sol (Imagem 1), e todas as espigas de trigo ficam amarelas quando se aproxima a época da colheita.

Imagem 1: A cabeça do girassol sempre irá se mover em direção ao sol.

 

Yetzirá foi chamado “animado” e corresponde ao Estágio Três do desejo de receber. Em Yetzirá, a Criação desfruta de uma substancial medida de “liberdade e individualidade (…) uma vida única para cada item”, escreve Ashlag na Introdução acima mencionada. Em Yetzirá, no entanto, explica ele, “o desejo ainda não tem a sensação dos outros, ou seja, não está  preparado para participar das dores ou alegrias dos outros”63.

Assiyá foi chamado “falante” ou “humano”, uma vez que reflete a forma  completa e mais complexa do desejo de receber. No nível humano, e Ashlag explica que essa  é  uma diferença fundamental entre os níveis falante e animado, o desejo de receber inclui a sensação dos outros64: “O desejo de receber no animado, que não tem a sensação dos outros, só pode gerar necessidades e desejos, na medida em que eles são impressos somente nessa criatura. O humano, porém, que pode sentir os outros também, torna-se carente de tudo o que os outros têm e sente, portanto, inveja de tudo o que os outros têm.” Por essa razão, “quando tem cem, deseja ter duzentos, e assim suas necessidades sempre se multiplicam até que queira devorar tudo o que há no mundo inteiro.” 65

Para realmente entender a diferença entre o nível humano dos desejos e todos os outros níveis, considere o seguinte experimento: ofereça a um cão um smartphone touch- screen novo em vez de sua comida favorita e veja qual deles ele escolhe. Depois, substitua o alimento do cão por comida humana e deixe o smartphone. Então tente a mesma experiência com uma pessoa.

Como os Desejos se Tornam Mundos

Do livro “Interesse Próprio vs. Altruísmo na Era Global”

Continuando a alegoria Partzuf/empresa, a companhia, também conhecida como “Criação”, começa a organizar os desejos “desempregados” em sua lista de espera, colocando os mais fracos, mais fáceis de lidar no topo da lista, e os mais intensos, indisciplinados no final. A Criação divide esses desejos em quatro categorias, similares aos quatro estágios na evolução dos desejos. Refere-se a cada categoria como um arquivo Olam (mundo), da palavra hebraica Haalama (ocultação), uma vez que esses desejos devem ser mantidos separados e ocultos das luzes até que possam ser operados corretamente ─ com o objetivo de doar. Assim, os desejos com qualidades mais semelhantes ao Estágio Um são chamados “o mundo de Atzilut“; aqueles mais similares ao Estágio Dois, “o mundo de Beriá“; os mais semelhantes ao Estágio Três formam “o mundo de Yetzirá“; e os mais semelhante ao Estágio Quatro tornam-se “o mundo de “Assiyá” (Figura 8). Para simplificar, eles são chamados de “ABYA“.

Figura 8: A Criação divide os desejos remanescentes em quatro categorias, com características semelhantes às quatro fases da evolução dos desejos. Cada categoria se refere a um Olam (mundo), da palavra hebraica Haalama (ocultação).

Quando Cabalistas descrevem o reino espiritual ─ onde os desejos trabalham com a intenção de doar ─, geralmente os dividem em mundos e descrevem o que acontece neles (como os desejos realmente recebem). Eles, portanto, se referem a tudo o que precede o mundo de ABYA como um mundo também e o chamam “o mundo de AK” (Adam Kadmon ─ o homem primordial). De certa forma, o mundo de AK é paralelo ao Estágio Raiz, ou Estágio Zero, na evolução dos desejos.

Note-se que nosso mundo não é mencionado entre os mundos espirituais. Porque nosso mundo está baseado no egoísmo e os mundos da Cabalá refletem níveis de doação, nosso mundo não é considerado parte do sistema espiritual (com o propósito de doar).

O sistema espiritual está incessantemente evoluindo a partir da interação entre as suas forças, gradualmente fazendo mais com que seu desejo seja capaz de receber com a intenção de doar, construindo cada etapa baseado nas conclusões e ações executadas em suas fases anteriores. Da mesma forma como um bebê cresce, suas habilidades físicas  e cognitivas se desenvolvem a partir da construção de capacidades previamente  adquiridas e observações. Sem passar por esses estágios iniciais de desenvolvimento, os bebês não se tornam adultos. É claro, nós não mantemos nem precisamos manter essas observações do início da vida em nossa consciência enquanto vivemos nossa rotina diária, uma vez que se tornaram automáticas, mas, ainda assim, estamos constantemente usando-as em nossa vida adulta.

Ajudamos as crianças a adquirir novas capacidades e dados e as vigiamos para nos certificarmos de que não tentem fazer as coisas prematuramente. Da mesma forma, para completar o “amadurecimento” da criação em ser parecida com o Criador, é necessário aprender com quais desejos se pode trabalhar (receber a fim de doar), bem  como quais os desejos com que ainda não se pode trabalhar, porque iriam despertar os sentimentos de inferioridade e vergonha.

Assim, em cada mundo, a Criação examina cuidadosamente a luz (prazer) que o desejo de doar quis lhe transmitir. Em Atzilut, a Criação recebe toda a luz, já que Atzilut corresponde ao desejo do Primeiro Estágio ─ recepção de toda a  luz  “automaticamente”, não estando seu próprio desejo de receber envolvido. Por  essa razão, a combinação desejo-prazer em Atzilut é chamada “parada” ou “inanimada”, já que ainda é o desejo passivo.

Em Beriá, a Criação recebe menos luz, porque Beriá corresponde ao Estágio Dois,  que é um estado mais desenvolvido do desejo de receber ─ um desejo de doar como o Criador. Como Beriá corresponde ao primeiro desejo que reagiu à luz, a ele foi dado o nome do primeiro nível de vida: “vegetativo”.

Em Yetzirá, a Criação recebe ainda menos luz que em Beriá, porque Yetzirá  corresponde ao Estágio Três no desejo de receber, que recebeu apenas um pouco da luz para começar (veja Capítulo 2, “As Quatro Fases e a Raiz da Criação”). Ainda, é um estágio mais desenvolvido na evolução do desejo de receber, mostrando certo nível de autonomia. Por essa razão recebeu o nome do nível de evolução cujos membros mostraram ao menos alguma autonomia ─ “animado”.

Em Assiyá, a Criação recebe tão pouca luz que ela não é sentida como prazer, mas como mero sustento. Assiyá corresponde ao Estágio Quatro na evolução dos desejos e, assim como o Estágio Quatro experimentou a restrição, o mundo de Assiyá é impedido de experimentar a luz. Como, porém, corresponde ao último, mais desenvolvido e mais complexo nível do desejo, recebe o nome do seu paralelo físico: “humano” ou “falante”.

Capítulo 3: A ORIGEM COMPARTILHADA DA HUMANIDADE

Do livro “Interesse Próprio vs. Altruísmo na Era Global”

No capítulo anterior, falamos sobre o surgimento do desejo de receber no Estágio Um e do desejo de doar no Estágio Dois, como ramificação do desejo primordial de doar na Raiz. Também mostramos que, devido a seu desejo de doar, o desejo de receber foi reativado no Estágio Três e maximizado no Estágio Quatro. A maximização do desejo de receber levou a querer não apenas desfrutar, mas a realmente tornar-se como seu progenitor ─ o Estágio Raiz ─ e até mesmo a ter o status  de primazia do Estágio Raiz.  A realização posterior que não foi (ainda) possível induziu um senso de inferioridade inerente no Estágio Quatro, que levou a uma restrição ─ a eliminação de qualquer sensação de prazer (luz).

Também porque o desejo real do Estágio Quatro é pela primazia da Raiz, ele não se contenta com o prazer ilimitado que recebeu no Estágio Um. Em vez disso, deseja obter a natureza da Raiz, o Pensamento da Criação, e, consequentemente, a primazia da Raiz.

Assim, a eliminação do prazer no Estágio Quatro não é resultado de sua incapacidade de receber, nem consequência da incapacidade de doar da Raiz. A Raiz doa incessantemente, mas o desejo de receber não quer receber algo tão degradante como caridade (como descrito por Ashlag em “A Outorga da Torá”59). Por essa razão, porque o Estágio Quatro deseja adquirir o pensamento do doador e se tornar como seu Criador, a sua restrição é um desdobramento de sua decisão de não receber a não ser com a intenção de doar, porque assim  retribui o desejo de doar do Criador.

Para isso, o Estágio Quatro cria um mecanismo de três partes, chamado Partzuf (Face), para determinar se ele deve receber luz e, em caso afirmativo, quanto, com a intenção de doar a qualquer momento (Figura 6). A seção superior do Partzuf é chamada Rosh (Cabeça). Sua tarefa é determinar o quanto da abundância (luz) será recebida  pelo desejo de receber. O desejo de receber em si mesmo constitui a parte  inferior  do Partzuf, que é chamada Guf (Corpo).

Entre o Rosh (Cabeça) e o Guf (Corpo) ergue-se a Masach (Tela). Assim como uma membrana permeável seletiva permite que apenas algumas moléculas se infiltrem através dela, a Masach bloqueia a luz, permitindo que no Guf entre somente  a quantidade de luz que o Rosh decidiu que poderia receber com a intenção de doar, e, ao mesmo tempo, repele o restante da luz. Dessa forma, a Masach funciona como um guarda, garantindo que a degradação sentida imediatamente antes da restrição não irá retornar.

Figura 6: O mecanismo chamado Partzuf (Face): o Rosh (Cabeça) determina o quanto  da abundância (luz) se pode receber. O Guf (Corpo) é o desejo de receber em si mesmo, e entre o Rosh e o Guf ergue-se a Masach (Tela), que admite no Guf apenas tanta luz quanto possa ser recebida a fim de outorgar.

 

Em certo sentido, um Partzuf pode ser comparado a uma grande empresa, na qual o Masach é como o departamento de Recursos Humanos (HR). Se a gestão, o Rosh (Cabeça), pretende aumentar a produção (doação, nível de ser como o Criador), precisa contratar mais pessoas (desejos) para poder receber mais luz/prazer (para assim doar ao doador). Uma vez que novas pessoas são contratadas, serão admitidas na empresa (Guf, Corpo) e postas para trabalhar: recebendo prazer com a finalidade de doar.

Quando o Rosh decide que é hora de agir, o Masach ─ departamento de RH ─ seleciona os candidatos (desejos) e escolhe apenas os corretos. Um novo funcionário (desejo) não deve ser subqualificado (muito pequeno), uma vez que assim não traria prazer  ao Criador (porque não se pode sentir um grande prazer quando se tem um desejo pequeno por ele). Ele também não pode ser superqualificado (desejos demasiado intensos para serem usados com a intenção de doar), uma vez que despertar o desejo excessivo de receber resulta na degradação da criatura.

Em ambos, no Partzuf e em sua mundana empresa “de trabalho da mesma natureza” a que podemos chamar “Criação”,  um problema permanece sem solução: o  que acontece com os desejos (pessoas) que não foram empregados (para o trabalho de doação no Guf do Partzuf)? Elas estão condenadas ao desemprego eterno (rejeição)? Isso significa que sempre haverá luzes (prazeres) que o Criador deseja transmitir, mas que não podemos receber. Isso desafia o propósito da criação: possibilitar aos destinatários (Criação, nós) receber prazer sem limite, poder, conhecimento e supremacia do Criador.

De fato, eventualmente todos os desejos serão “contratados” e colocados para trabalhar, e todas as luzes serão recebidas. Para evitar sobrecarregar o sistema e correr o risco de um colapso total, alguns desejos, no entanto, devem ser temporariamente suspensos. As luzes que deveriam ser recebidas nesses desejos são, portanto, refletidas e permanecem como “luzes circundantes” (Figura 7).

Os desejos e as luzes que por enquanto não podem ser colocados para trabalhar aplicam uma pressão constante sobre o Partzuf , “lembrando” que há ainda mais prazer para receber se for para receber do Criador tudo o que o Criador deseja transmitir. Em nosso exemplo mundano, o departamento de marketing é a “luz circundante” ─ constantemente relatando novos mercados potenciais nos quais a empresa pode se expandir e gerar lucros substanciais.

Figura 7: Enquanto o Partzuf é incapaz de receber toda a luz, a luz refletida deve permanecer fora do Partzuf. Ela é chamada “luz circundante”.

Gênesis

Do livro “Interesse Próprio vs. Altruísmo na Era Global”

Em seu livro A Árvore da Vida, o grande Cabalista do século XVI, Isaac Luria (o Ari), fundador da Cabalá Luriânica, hoje escola predominante da Cabalá, escreveu: “Saiba que antes de as emanações serem emanadas e as criaturas criadas, uma Luz Superior, Simples preenchia toda a realidade. E não havia lugar vago, como uma atmosfera vazia  e um vazio, mas tudo era preenchido pela Luz simples e ilimitada.”42

Desde então, apenas um Cabalista se aventurou a escrever uma explicação abrangente acerca dessas frases profundas, como também introduziu um comentário completo sobre O Livro do Zohar: o Cabalista Rav Yehuda Ashlag, Baal HaSulam. Em seu comentário de seis volumes sobre os escritos do Ari, conhecido como Talmud Eser Sefirot (O Estudo  das Dez Sefirot),  Baal HaSulam explica  que  a  Luz  à  qual o  Ari se  refere   é “Todas as sensações agradáveis e concepções neste mundo.”43 Ele também define “Luz” como “tudo, com exceção da substância dos vasos [desejo de receber].”44

Em outras palavras, existem apenas dois “seres” na existência: o desejo de doar, que Ashlag define como “luz”, “Criador” ou “prazer”, e o desejo de receber prazer, de deleitar-se, que ele chama de “um vaso”, “a criatura” ou “o ser criado.” Para entender como toda a realidade pode surgir de apenas dois desejos, precisamos examinar mais profundamente a forma como eles interagem.

Quatro Estágios e a Raiz da Criação

Gravidade, eletricidade e todas as outras forças da natureza são fenômenos atemporais. Em outras palavras, não se pode indicar um ponto específico no tempo em que  elas foram criadas, porque as forças da natureza não são eventos específicos; elas são potenciais ou campos que cobrem a totalidade do espaço-tempo. Elas se manifestam sob determinadas condições e, dados os instrumentos adequados, pode-se detectar a sua existência.

Para provar a existência da energia elétrica, é necessária uma resistência de algum tipo, como uma lâmpada ou um medidor de corrente. Sem algo que resista ao fluxo da corrente elétrica, nunca poderíamos saber que a eletricidade estava fluindo através dele e jamais poderíamos descobrir a existência da eletricidade. Da mesma maneira, para provar a existência da gravidade, precisamos observar seus efeitos sobre a massa física e para descobrir a luz, precisamos de um objeto que a luz ilumine, o que  significa bloquear a luz e refleti-la de volta a nossos olhos.

Exatamente da mesma forma, os Cabalistas descobriram o desejo de doar por meio da interação desse desejo com seu resistor ─ seus próprios desejos de receber. Quando refinaram e calibraram suas resistências, ou seja, os desejos de receber, eles foram capazes de detectar a força que operava esses desejos. Foi assim que Abraão descobriu que a força que operava os seus desejos e o resto da realidade era um desejo de doar. Esse é o conhecimento que Abraão passou para seus filhos e alunos e esse ainda é o conhecimento que os Cabalistas passam de professor para aluno e agora para o mundo inteiro.

Vale lembrar: a diferença entre um Cabalista e outro não está no conhecimento que cada um transmite, mas na linguagem e no estilo que cada um usa para transmiti-lo. A razão pela qual eu estou contando principalmente com os escritos de Ashlag não é porque ele possuísse conhecimento mais extenso do que, digamos, o Ari. Estou usando seus  escritos simplesmente porque ele é o Cabalista mais recente e escreveu em estilo mais contemporâneo. Ele é, portanto, o mais fácil de ser entendido por um leitor do século XXI com pouca ou nenhuma experiência em Cabalá. Quanto mais avançamos no tempo, mais difícil se torna compreender o sentido pleno dos textos cabalísticos.

Voltando ao tema, em O Estudo das Dez Sefirot, Ashlag nos diz que esse desejo de doar criou o desejo de receber como um desdobramento necessário do seu desejo de doar.45 Em outras palavras, porque o desejo é um desejo de doar, ele criou algo que desejasse receber. Assim como é impossível explicar o que é dia sem também entender o que é noite, ou entender o conceito de “lado esquerdo” sem ter o conceito de “lado direito”, da mesma forma é impossível perceber o desejo de receber sem perceber o desejo de doar.

Para colocar as coisas no contexto correto, quando os Cabalistas falam do Criador, eles estão se referindo ao desejo de doar, e quando falam da Criação, estão se referindo ao desejo de receber o que o Criador doa. Além disso, quando eles apresentam um diálogo entre o Criador e as criaturas, como nós encontramos na Bíblia, eles estão realmente introduzindo uma interação específica entre o desejo de doar e o desejo de receber, e não uma troca de vocalismos entre um agregado de proteínas e uma voz nas nuvens.

A esse respeito, na conclusão de sua introdução a O Estudo das Dez Sefirot (item 156), Ashlag toma cuidado especial ao nos advertir: “No entanto, há uma condição estrita  para o envolvimento nessa sabedoria ─ não materializar os assuntos a partir da imaginação ou de formas físicas. Isso é considerado violação, ‘Tu não farás para ti imagem de escultura, nem qualquer espécie de semelhança.’ (…) Para salvar os leitores de qualquer materialização, eu escrevi o livro O Estudo das Dez Sefirot, no qual compilei dos livros do Ari todos os principais ensaios sobre a explicação das dez Sefirot em uma linguagem mais simples e fácil.”46

Assim, na base da existência não existe matéria, mas formas do desejo de receber prazer criadas pelas interações com o Criador ─ o desejo de doar prazer.

Para fazer a ponte entre essa abordagem e um território mais familiar, imagine-se um raio. Para os gregos antigos, o raio era a arma tradicional de Zeus. Para nós, se consultarmos a Enciclopédia Britânica47, esse mesmo raio é meramente “A descarga visível de eletricidade que ocorre quando uma região de uma nuvem adquire uma carga elétrica em excesso suficiente para quebrar a resistência do ar.”

Da mesma forma, compreender o verdadeiro sentido da história de Abraão requer uma explanação feita por quem adquiriu conhecimento suficiente para explicá-la de maneira prosaica, racional, ou seja, um Cabalista, e de preferência um que possua conhecimento substancial e suficientes habilidades didáticas, tal como Ashlag.

Indo Atrás do Pensamento da Criação

No “Prefácio à Sabedoria da Cabalá”48, Baal HaSulam divide o início da Criação em cinco etapas e uma restrição, mas podemos reuni-las em três grupos. Pense nos dois primeiros grupos como sendo um carro e o combustível para seu motor e imagine que o terceiro grupo é o motorista.

O primeiro grupo contém apenas o Estágio Zero, a Raiz. Esse é o desejo de doar, a energia que cria e sustenta o carro chamado “Criação” (um modelo muito antigo, que não é mais fabricado).

O segundo grupo ─ Estágios Um e Dois ─ constrói uma “plataforma” para a evolução. Esse é o próprio carro. Em certo sentido, a plataforma que os dois estágios construíram se assemelha ao que Richard Dawkins descreveu em O Gene Egoísta como “A sopa primeva”49, o substrato oceânico que continha os ingredientes para o início da vida.

O terceiro grupo ─ Estágios Três e Quatro ─ é “o motorista”. Sua função é ligar o motor de evolução ─ a interação entre os desejos. Como explicaremos abaixo e no próximo capítulo, a restrição é a roda pela qual a criação é impulsionada em direção a seu propósito: descobrir o Pensamento da Criação.

Estágios Zero e Um

Primeiramente, um comentário geral sobre os estágios: depois que a Cabalá ganhou popularidade nos últimos anos, alguns de seus termos aparecem com diferentes acepções.  O  termo  Sefirot  é  frequentemente  mencionado  em  relação  à  origem  da Criação. É possível descrever o processo da Criação usando os nomes das Sefirot em  vez de estágios, mas isso pode complicar o assunto desnecessariamente. Para verificar como as Sefirot e as quatro fases referem-se ao mesmo processo, consulte-se o ensaio “Prefácio à Sabedoria da Cabalá”50.

Em termos Cabalísticos, a existência do desejo de doar sem o desejo de receber é chamado “Estágio Raiz” ou “Estágio Zero”. O Estágio Raiz é  imediatamente seguido por seu ramo obrigatório ─ “Estágio Um” ─, o desejo de receber, que está permeado com a abundância fornecida a ele pela Raiz, o desejo de doar.

Como resultado, nenhum elemento da existência, de partículas subatômicas a galáxias em expansão no universo, escapa do “binômio” dar–receber. Isso pode aparecer na forma de quente vs. frio, seco vs. molhado, pequeno vs. grande, centrífugo vs.  centrípeto, energia vs. matéria, etc., mas todos derivam dos opostos primordiais: dar e receber. Para ilustrar essa interação, eu uso uma flecha para baixo para denotar o desejo de doar, e uma tigela ou recipiente (usualmente chamado “vaso”) para denotar o desejo de receber (Figura 1)

Figura 1: O Estágio Raiz é imediatamente seguido por seu ramo obrigatório ─ Estágio Um –, que é o desejo de receber, permeado pela abundância fornecida pelo desejo de doar. A Raiz é chamada “Luz” e o desejo de receber, “vaso”.

Estágio Dois

O resultado do encontro entre os dois desejos no Estágio Um é o Estágio Dois. Aqui a interação real entre esses dois desejos realmente acontece. Para entender a mudança que ocorre entre o Estágio Um e o Estágio Dois, considere a admiração de uma criança por seus pais. Devido ao fato de que as crianças, especialmente no princípio da infância, idolatram os pais, elas se esforçam em imitá-los. Elas observam cada movimento dos pais atentamente (a tendência é os meninos observarem o pai e as meninas observarem a mãe), elas “estudam” o comportamento de seus pais e tentam seguir-lhes o exemplo.

Estudos contemporâneos mostram como as crianças estão atentas à orientação de seus pais. Em Perspectivas na Imitação: Da Neurociência às Ciências Sociais, Dr. Andrew Meltzoff e Wolfgang Prinz, professor da Universidade de Cambridge, Reino Unido, escrevem: “Os pais proporcionam a seus jovens um aprendizado sobre a maneira de agir como membro de sua cultura específica muito tempo antes que a instrução verbal seja possível. Uma grande variedade de comportamentos ─ desde usar ferramentas até os costumes sociais ─ é passada de uma geração a outra por meio da aprendizagem imitativa.”51

Além disso, o best-seller do Dr. Benjamin Spock, Cuidados com o Bebê e a Criança, dirigido aos pais, fornece uma descrição tão completa desse processo, que me sinto obrigado a apresentá-lo aqui praticamente na íntegra:

“A identificação é muito mais importante do que brincar. É assim que o caráter é construído. Depende mais do que as crianças percebem em seus pais e modelam em si mesmas depois, do que daquilo que os pais tentam ensinar-lhes em palavras. Essa é a forma como ideais e atitudes básicos das crianças são estabelecidos ─ para com o trabalho, para com as pessoas, para consigo mesmas (…) É assim que elas aprendem a ser o tipo de pais que serão daqui a vinte anos, como se pode prever ao se ver a forma carinhosa ou ao ouvir suas repreensões quando brincam com suas bonecas.”

Consciência de gênero. É nessa idade que a menina se torna mais consciente de que é mulher e vai crescer para ser uma mulher. Ela, então, observa sua mãe com atenção especial e tende a moldar-se à imagem de sua mãe: como sua mãe se sente em relação ao marido e ao sexo masculino em geral, em relação  às mulheres, em relação  a seus filho e filha, em relação ao trabalho e às tarefas domésticas. A menina não se tornará uma cópia exata de sua mãe, mas certamente será influenciada por ela em muitos aspectos.”

“Um garoto nessa idade percebe que está a caminho de se tornar um homem e, portanto tenta seguir predominantemente o padrão de seu pai: como seu pai se sente em relação à sua mulher e ao sexo feminino em geral, em relação aos outros homens, em relação a  seu filho ou filha, em relação ao trabalho fora e dentro de casa.”52

E assim como uma criança deseja crescer para ser como seu pai, a Segunda Fase na evolução do desejo é uma expressão da vontade do desejo de receber (Estágio Um) de ser como seus pais ─ o desejo de doar (a Raiz). Isso acontece porque o desejo de  receber ─ o “fruto” do desejo de dar ─ do Estágio  Um reconhece a  superioridade da Raiz e deseja ser como  o seu progenitor. E porque o  único  exemplo  que o Estágio Um recebe da Raiz é o de dar, no Estágio Dois o desejo de receber começa a querer doar também.

Anteriormente dissemos que a base da existência são formas do desejo de receber, criadas pelas interações com seu criador ─ o desejo de dar. Assim, a partir de duas reações naturais e “automáticas” à doação, dois desejos opostos emergem: receber (no Estágio Um) e doar (no Estágio Dois). As várias combinações desses dois desejos formam a base de cada objeto, cada acontecimento e toda evolução que ocorre em nosso mundo, inclusive nós ─ nossos corpos, nossos pensamentos e nossas ações.

Assim como uma criança deseja se tornar seu modelo parental, na raiz do desejo de dar no Estágio Dois encontra-se o desejo de receber o status superior do progenitor, poder e conhecimento. Em outras palavras, a Segunda Fase é o desejo de receber o status e a natureza da doação. Por essa razão, é melhor imaginar o Estágio Dois como um vaso (desejo de receber) que quer doar, ou “vaso de doação”. Por isso, a seta que designa esse desejo aponta para fora, em direção ao Criador (Figura 2).

O Estágio Dois, porém, é mais que um novo desejo. Ao querer doar, o Estágio Dois é admitido em um novo estado de ser. Como não deseja mais receber, mas doar, necessita de alguém a quem doar. Assim, para ser como seu criador – um doador – o Estágio Dois deve agir positiva e favoravelmente em relação aos outros.

Figura 2: Na raiz do desejo de doar no Estágio Dois, encontra-se o desejo de receber. É melhor, portanto, imaginar o Estágio Dois como um vaso (desejo de receber)  que almeja doar, ou “vaso de doação”.

 

Por essa razão, o Estágio Dois, a força que nos compele a doar apesar de nosso desejo subjacente de receber, é a força que torna a vida possível. Sem ela, os pais não teriam filhos (a quem pudessem doar), nem se importariam com eles assim que nascessem; a vida não seria possível.

De fato, o melhor exemplo do Estágio Dois é o amor da mãe por seu filho. Quando consideramos o amor infinito, a compaixão e o esforço das mães na criação de seus bebês, sentimos reverência e nos admiramos de que tamanha devoção seja mesmo possível. E ainda, quando olhamos para o rosto de uma mãe enquanto ela amamenta, troca fraldas ou banha o bebê, vemos que frequentemente está radiante. Por que isso acontece? O que dá às mães a habilidade de não apenas suportar tamanha tensão, mas desejar e sentir prazer nisso?

A resposta é simples e toda mãe a conhece instintivamente: ao se doar a seu bebê, ela experimenta imensa alegria. Há um desejo de receber o prazer da maternidade (ou paternidade) por trás de cada decisão de trazer uma nova vida ao mundo. Sem isso, as pessoas não teriam bebês, a não ser por engano, e isso seria péssimo para as crianças.

Agora podemos ver por que a força inicial da Natureza é o desejo de doar e não o desejo de receber. Capturando concisamente a essência desse conceito está a cabalística definição de altruísmo feita por Baal HaSulam. Em 1940, ele publicou um artigo intitulado “A Nação”, em que escreve: “A força altruísta [desejo de doar] é como ondas centrífugas ─ uma força direcionada para fora… que flui de dentro para fora.”53

 

Estágio Três

Como Ashlag afirmou, a evolução dos desejos, que pendem por causa e efeito, é obrigatória, aderindo a regras fixas e determinadas. O próximo passo obrigatório para o Estágio Dois é começar a doar, por ser isso o que ele quer fazer. No Estágio Dois, porém, o desejo que recém criou o desejo de doar tem um problema para resolver: ele quer doar, mas tudo o que existe além de si mesmo (o desejo de receber com suas duas etapas) é o desejo de doar que o criou. Consequentemente, a única coisa que o Estágio Dois pode dar a seu criador é sua vontade de receber. Em outras palavras, ele irá receber, assim como no Estágio Um, mas com a intenção de dar prazer à Raiz, ou seja, ao criador. Esse modus operandi “invertido”, em que o ato é recepção, mas a intenção é doação, é um conceito completamente novo e, portanto, merece um novo nome ─ “Estágio Três” (Figura 3).

Pode parecer estranho para alguns, mas nós aplicamos esse modo de  ação rotineiramente em nossos relacionamentos. Pense em um jovem que  vem visitar  sua mãe após não vê-la por um longo tempo. É bastante provável que a mãe queira preparar algo para seu filho querido comer. E se o filho não estiver com fome? Ele não vai comer? Na maioria dos casos, ele vai comer e expressar seu prazer pela comida simplesmente para agradar à mãe.

Figura 3: No Estágio Três, o desejo de receber escolhe receber não porque desfruta, mas porque isso agrada à Raiz, o desejo de doar.

 

Nesse caso, o filho não está focado em seu próprio prazer, mas no prazer da mãe em vê- lo comer. No “Prefácio à Sabedoria da Cabalá”54, Baal HaSulam descreve esse modo de trabalho como uso parcial do desejo de receber, apenas o mínimo necessário para a recepção do prazer, mantendo o centro de atenção no prazer do doador pela aceitação do recebedor. Em nosso exemplo culinário, o filho deve ter algum apetite ou não será capaz de comer. Seu apetite, entretanto, pode não ser grande o suficiente para mudar sua intenção (ou atenção) de agradar a sua mãe para agradar a si mesmo.

Estágio Quatro

Quando o apetite do filho é leve o suficiente para ser subordinado a seu desejo de agradar a sua mãe, ele pode se concentrar em sua intenção de agradar, ao invés de em seu estômago. E se ele estivesse com muita fome e não tivesse comido o dia todo? Será que ele ainda seria capaz de ignorar o seu estômago roncando, se concentrar apenas no prazer de sua mãe e comer apenas para agradar a ela? Quando o Estágio Três começa a receber porque deseja agradar à Raiz, ele percebe que, quanto mais recebe, mais agrada a seu criador, a Raiz.

Em consequência, começa a querer receber mais e mais e mais. Finalmente, gostaria de receber tudo, assim como no Estágio Um, despertando, desse modo, todos os seus desejos de receber. Esse autoevocado desejo total de receber é chamado “Estágio Quatro”.

Há, contudo, uma diferença fundamental entre o Estágio Um e o Estágio Quatro: a relação com o doador. O Estágio Um não se relaciona com o doador, apenas com a abundância. Assim que “percebe” que há o desejo de doar que o criou, o vaso quer ser como o doador, e isso inicia o Estágio Dois. O Estágio Quatro percebe não só a existência do doador, mas também a benevolência e a primazia do doador, uma vez que foi o desejo de doar que iniciou a criação. E sendo um completo desejo de receber, o Estágio Quatro almeja receber não apenas a abundância que o Estágio Um recebe, mas  o status de primazia da Raiz (Figura 4).

Figura 4: Sendo um total desejo de receber, o Estágio Quatro deseja não apenas a abundância do Estágio Um, mas o status de primazia da Raiz.

 

Para receber esse status, no entanto, o Estágio Quatro deve ser semelhante ao Criador, e não o é. Ao contrário, é um desejo consciente de receber tudo ─  onipotência, onisciência e até mesmo a natureza do Criador. Menos do que isso estaria incompleto,  já que não seria exatamente idêntico ao Criador. Isso é o que Ashlag quer dizer, quando escreve no “Prefácio à Sabedoria da Cabalá”55 que o Estágio Quatro pretende atingir o Pensamento da Criação (Figura 5).

Figura 5: O Estágio Quatro deseja alcançar o Pensamento da Criação

 

Em outro ensaio, “A Entrega da Torá [Luz]”, Ashlag oferece uma bela explicação sobre a natureza da relação Criador-criado que ocorre no início da Criação: “Essa questão é semelhante a um homem rico que diariamente cumulava um homem do mercado com ouro, prata e todas as coisas desejáveis. E a cada dia dava-lhe mais presentes do que no dia anterior. Finalmente, o homem rico perguntou: “Diga-me, todos os seus desejos foram satisfeitos?” Ele [o homem do mercado] respondeu: “Nem todos os meus desejos foram satisfeitos; quão bom e agradável seria se todos os bens e coisas preciosas tivessem vindo a mim por meu próprio trabalho, como elas vêm para você. Assim eu  não estaria recebendo a caridade de suas mãos.” O homem rico então lhe disse: “Nesse caso, nunca haverá uma pessoa capaz de satisfazer os seus desejos.”56

Esse ressentimento pelos presentes foi bem observado em pesquisa conduzida por El- Alayli e Lawrence A. Messe, da Michigan State University. Suas descobertas, publicadas no Journal of Experimental Social Psychology, dizem que, receber favores não esperados leva as pessoas a experimentarem duas emoções opostas: o desejo de retribuir o favor, que os pesquisadores corretamente descreveram como “obrigação”, ou o ressentimento, ao qual se referiram como “reação psicológica”57.

Além disso, escreveram: “A avaliação dos participantes acerca do supervisor (benfeitor) sugeriu que as pessoas têm impressões distintas acerca de quem fez os favores que violavam (excediam) as expectativas ou normas”58. Essa pesquisa claramente demonstra que é natural do ser humano sentir vergonha ou ficar constrangido quando tratado com excepcional generosidade. Essas emoções, a Cabalá explica, estão diretamente enraizadas na vergonha que o Estágio Quatro experimenta, quando se depara com a doação ilimitada sem ter a chance de se tornar um doador também.

Assim, quando o Estágio Quatro percebe que não pode obter a primazia  da  Raiz, percebe que não pode receber tudo e que é inerentemente inferior a seu criador. Isso instantaneamente extingue qualquer sensação de prazer no Estágio Quatro e, apesar da infinita abundância que a Raiz fornece, o Estágio Quatro permanece com um sentimento de vazio, já que seu maior desejo não lhe foi concedido. Em Cabalá, quando o desejo do Estágio Quatro de ser igual a seu criador ofusca todos os outros prazeres, isso  é chamado “restrição”. Como o desejo de ser igual ao Criador é muito maior do que os outros desejos, isso praticamente impede que o prazer seja experimentado.

Daqui para frente, a evolução se desdobra em um único e profundo propósito: possuir novamente a abundância que a Raiz deseja doar e que pode ser recebida apenas com a intenção de doar.

Capítulo 2: O NÚCLEO DOS DESEJOS

Do livro “Interesse Próprio vs. Altruísmo na Era Global”

A importância da descoberta de Abraão não reside tanto em sua inovação científica ou conceitual, embora, em seu tempo, ambas tenham sido absolutamente radicais. Em vez disso, o principal significado de sua descoberta reside no seu aspecto social.

Na verdade, a motivação de Abraão para fazer as perguntas que no final levaram a sua descoberta foi tanto social como intelectual. Ele notou que o povo da cidade estava se tornando cada vez mais alienado. Por um longo tempo, os babilônios nutriram uma sociedade próspera que permitiu que vários sistemas de crenças e ensinamentos coexistissem em harmonia. No tempo de Abraão, porém, as pessoas estavam ficando intolerantes, vaidosas e alienadas umas das outras, e Abraão perguntava-se por quê.

A partir de suas perguntas e observação da natureza, ele percebeu que o mundo que aparece aos nossos sentidos é apenas uma cobertura superficial que cobre uma interação complexa e magnífica de forças. Quando essas forças se entrelaçam de certa forma, induzem determinado tipo de realidade física ou emocional a aparecer, tais como nascimento, morte, guerra, paz e todos os estágios que permeiam isso. Essa interação não existe apenas em grande escala como entre os países, mas em cada elemento da vida, desde o subatômico até o interestelar, desde o pessoal ao internacional. Na última parte deste livro vou explorar as implicações sociais das descobertas de Abraão, mas para isso precisamos entender mais acerca da natureza das descobertas em si mesmas.

O processo de pensamento de Abraão para descobrir essas forças é evidente em suas perguntas, que para ele foram, como Neil Postman coloca em O Fim da Educação, “os principais instrumentos intelectuais disponíveis para os seres humanos.”38 Nos escritos de Maimônides, Abraão pergunta: “Como foi possível para esta roda [da realidade] sempre girar sem condutor? Quem a está movendo, já que não pode girar sozinha?”39 Mais tarde, suas percepções ajudaram a derrotar Nimrod no debate, quando Nimrod continuava lhe ordenando que servisse este ou aquele elemento, e Abraão continuava mostrando-lhe que esses elementos eram todos ramos de algo maior, sem poder real em neles próprios.

“Assim, a partir de repetidas reflexões e observações, Abraão percebeu o que realmente faz o mundo girar” e, como todas as grandes verdades, era muito simples: desejos, dois desejos, para ser exato. Um deles é o desejo de doar e o outro, o desejo de receber. “A interação entre esses desejos é o que faz o mundo girar”, é a roda que move todas as coisas e a  força que cria todos os fenômenos.  Na terminologia cabalística,  o  desejo de doar é referido  como  “Seu desejo  [do  Criador] de fazer o  bem a Suas criações”40, e  o desejo de receber é descrito como “o desejo de receber deleite e prazer”41. Para encurtar, os Cabalistas se referem a eles como “desejo de doar” e “desejo de receber”.

Essa constatação simples é o que Abraão estava tentando transmitir a seus colegas babilônios, mas Nimrod procurou impedi-lo de fazer isso ao tentar matá-lo. E quando não conseguiu o que queria, mandou-o embora.

Infelizmente, com a deportação de Abraão, o espírito de camaradagem e união da Babilônia não foi restaurado. Finalmente, “O Senhor [Criador, Natureza] confundiu a linguagem de toda a terra e dali o Senhor os espalhou sobre a face de toda a terra” (Gênesis 11:9).

Isso não aconteceu aos babilônios, porque um vingativo e poderoso velho homem chamado “O Senhor” nutria rancor contra eles. Isso aconteceu a eles, porque os desejos que Abraão descobriu possuíam determinado sentido de evolução. Não há interação aleatória aqui, mas um conjunto de regras que se desdobram por uma ordem rígida de causa e efeito.

Quando Abraão descobriu essas regras, percebeu que seu povo local estava indo na direção errada, o que só poderia levá-los à futura destruição, por isso ele tentou o seu melhor para avisá-los. Como veremos, esses desejos são tão perpétuos e tão rígidos quanto a gravidade ou os polos positivo e negativo de um ímã. Como a gravidade e os polos do ímã, porém, ambas as forças podem ser usadas para trabalharem em nosso benefício.

Para entendermos a semelhança entre o estado atual da humanidade e o estado da sociedade babilônica e, portanto, a relevância da descoberta de Abraão para a crise global da atualidade, precisamos entender a direção em que os dois desejos evoluíram.  E para isso precisamos começar pelo início.

A Unidade Oculta Que Prevalece

Do livro “Interesse Próprio vs. Altruísmo na Era Global”

A Cabalá não é certamente a única ciência que investiga as forças ocultas da Natureza que operam em nosso mundo nos bastidores. De acordo com a Enciclopédia Britânica, “a teoria da mecânica de Newton, conhecida como mecânica clássica, representou com precisão os efeitos das forças em todas as condições conhecidas em seu tempo. (…) A teoria já foi modificada e ampliada pelas teorias da mecânica quântica e da  relatividade.” Em outras palavras, fazendo uma generalização grosseira, a ciência do século XX já não estava satisfeita com a teoria de Newton, por ser insuficiente para explicar todos os fenômenos observados na Natureza.

Na segunda metade do século XX, os cientistas perceberam que as novas teorias também ficaram aquém de explicar todos os fenômenos da Natureza. Isso  provocou uma busca por uma Grande Teoria Unificada (GUT). “O sonho dos teóricos [da física]”, segundo a Enciclopédia Britânica, “é encontrar uma teoria totalmente unificada, a teoria do tudo, ou TOE.”ii

No que parece um paralelo com a busca do TOE, muitos proeminentes físicos teóricos começaram a postular que, no nível mais fundamental, nós e todas as partes da realidade somos realmente um. O pioneiro físico teórico Werner Heisenberg disse: “Há um erro fundamental em separar as partes do todo, o erro de atomizar o que não deve ser atomizado. Unidade e complementaridade constituem a realidade.”iii

Contemporâneo de Heisenberg, seu companheiro e cofundador da física quântica, Erwin Schrödinger afirmou em seu ensaio “A Visão Mística”: “A pluralidade que percebemos  é apenas uma aparência, não é real.” Até mesmo o grande Albert Einstein, em carta datada de 1950, declarou: “Um ser humano é parte do todo chamado por nós de universo. (…) Experimentamos a nós mesmos,  nossos pensamentos e sentimentos como algo separado do resto, uma espécie de ilusão de ótica da consciência.”iv

Para provar, no entanto, que todas as partes da realidade são manifestações de um todo único, ou desenvolvendo o TOE que se aplica a todas as partes da realidade, seria necessário um paradigma que funcionasse em todos os níveis da vida física, mental e intelectual. E aqui os físicos estão fora de sua alçada. Mesmo os físicos teóricos mais inovadores não conseguem explicar todos os fenômenos observados da Natureza.

Em particular, uma explicação completa do fenômeno chamado “consciência” ilude cientistas de todos os campos. A consciência, porém, não está somente presente, mas, invariavelmente, afeta os resultados de experimentos científicos. A esse respeito, Dr. Johnston Laurance, ex-diretor do Instituto Nacional de Saúde Infantil  e Desenvolvimento Humano, publicou a seguinte declaração em um ensaio online, intitulado “Ciência Objetiva: Um Oxímoro Inerente”: “Todas  as  observações científicas, mesmo em seu nível mais fundamental, são afetadas pela consciência do observador. Assim, a declaração ‘ver para crer’ faz mais sentido do que aparenta. Numerosos estudos têm mostrado que a consciência exerce uma influência significativa

em muitas questões diferentes, que vão desde o crescimento de bactérias até a evolução de pacientes cardíacos.”v

Nesse ensaio, Dr. Laurance citou vários outros cientistas e pensadores que  compartilham essa visão, como o neurologista Jean Martin Charcot, do século XIX, considerado o pai da neurologia moderna: “Em última análise, vemos apenas o que nós estamos prontos para ver, o que temos sido ensinados a ver. Eliminamos e ignoramos tudo o que não faz parte de nossos preconceitos.”

Nesse sentido, se a observação científica afeta, distorce ou elimina completamente o fenômeno a ser observado, como a ciência pode ser considerada cem por cento  precisa?

Além disso, algum fenômeno pode ser plenamente compreendido se pelo menos um fator chave de influência, a consciência, não é sujeito de estudo e observação?

É aí que a filosofia entra para complementar a ciência e preencher as lacunas da incerteza. Muitos grandes pensadores fizeram isso ao expressar o  conceito  de “unicidade da realidade”. Zenão de Cício, o grande filósofo grego do século IV a.C., declarou: “Todas as coisas são partes de um único sistema, que é chamado Natureza.”vi

Da mesma forma, o filósofo e matemático alemão WG Leibniz expressou-se assim, em Escritos Filosóficos de Leibniz: “A realidade não pode ser encontrada exceto em uma única fonte, por causa da interligação de todas as coisas entre si.”vii

Certamente seria muito bom poder acreditar nessa imagem perfeita de unidade e interligação entre todas as coisas. Apesar da grande eloquência dos filósofos, um autêntico pesquisador da verdade dificilmente aceitaria uma ideia apenas porque “soa” bonita ou verdadeira. No final, o único teste verdadeiramente válido para uma teoria ou um conceito é a experiência pessoal de cada um.

Afinal, o que parece válido e verdadeiro para um pode parecer  completamente falso  para outro. Se você projeta um raio de luz através de um prisma, ele irá separar a luz em todas as cores do arco-íris. Se, no entanto, a pessoa para quem você está mostrando isso é monocromática, não farão diferença os nomes que você dá aos tons de cinza que ela verá. Para essa pessoa, todos eles serão cinzas. Da mesma forma, tão certos como os físicos e filósofos podem estar em suas observações sobre a unicidade e indivisibilidade da realidade, para aceitar essa unidade como um fato, as pessoas devem experimentar por si próprias.

Enquanto experimentar a unidade da realidade pode parecer mística para muitos, as citações acima provam que muitos proponentes dessa visão são reverenciados cientistas, alguns até ganhadores do Prêmio Nobel. Na verdade, a necessidade de uma visão mais completa e uniforme da realidade não surgiu com o advento da física quântica, nem mesmo com Einstein. Em 1879, o químico e físico inglês William Crookes declarou: “Nós temos realmente tocado a fronteira onde a matéria e a força parecem se fundir (…) Atrevo-me a pensar que os maiores problemas científicos do futuro serão encontrar a solução  nessa  região  fronteiriça,  e  mesmo  além;  aqui  me  parece  residirem  as mais recentes realidades, sutis, longe do alcance, maravilhosas.”viii

Na verdade, a partir de minhas pesquisas na ciência em geral e na Cabalá em particular, descobri que a intuição de Crookes foi por água abaixo, porque, como expliquei anteriormente, a Cabalá observa o objetivo final em primeiro lugar e só então explica a estrutura. E porque a realidade é o veículo com o qual atingimos esse objetivo, a Cabalá é inerentemente uma Grande Teoria Unificada, uma Teoria do Tudo, que tanto nos permite compreender o escopo completo da realidade, como de fato experimentar sua unidade.

O Precursor da Babilônia

Antes de nos aprofundarmos nos princípios desta Grande (e de fato) Unificada Teoria chamada Cabalá, devemos primeiramente entender como ela se originou e dar o devido crédito a seu “progenitor”. Vamos, por um momento, fazer uma viagem de volta no

tempo para a Mesopotâmia antiga, o berço da civilização. Há cerca de quatro mil anos atrás, situada em uma faixa de terra vasta e fértil entre os rios Tigre e Eufrates no que hoje é o Iraque, uma cidade-estado chamada Babel foi palco de uma civilização florescente. Movimentada com vida e ação, ela era o centro do comércio de todo o mundo antigo.

Babel, o coração da civilização dinâmica que hoje chamamos de “antiga Babilônia”, era um caldeirão e o cenário ideal para sistemas de crenças e ensinamentos diversos. Seu povo praticava a adoração de ídolos de muitos tipos e, entre as pessoas mais reverenciadas em Babel, havia um sacerdote chamado Abraão, que era uma autoridade local na prática da adoração de ídolos, como era seu pai, Terah.

Abraão, no entanto, possuía uma qualidade muito especial: ele era invulgarmente perspicaz e, como todos os grandes cientistas, zelava pela verdade. O grande estudioso do século XII, Maimônides (também conhecido como Rambam),  descreveu  em seu livro A mão poderosa a determinação de Abraão e seus esforços para descobrir verdades da vida: “Desde que este homem vigoroso foi desmamado, ele começou a se perguntar. (…) Ele começou a refletir sobre o dia e a  noite e ele se perguntou como era possível  que essa roda sempre rodasse sem condutor. Quem a faz rodar, já que não pode rodar sozinha? E ele não tinha nem professor, nem um tutor. Em vez disso, ele estava recluso em Ur dos Caldeus entre adoradores de ídolos analfabetos, com sua mãe e seu pai e todo o povo adorando estrelas, e ele adorando junto a eles.”ix

Em sua busca, Abraão soube o que existe além da fronteira que Crookes descreveu tantos séculos mais tarde. Ele encontrou a unidade, a unidade da realidade que Heisenberg, Schrödinger, Einstein, Leibniz e outros sentiram intuitivamente. Nas palavras de Maimônides, “Ele [Abraão] alcançou o caminho da verdade e entendeu a linha de  justiça com sua própria e  correta sabedoria. E ele sabia que  lá  há um só Deus que conduz (…) e que Ele criou tudo, e que em tudo o que existe, não há outro Deus senão Ele.”x

Para interpretar esses trechos corretamente, é importante notar que, quando os  Cabalistas falam de Deus, o termo não possui o mesmo significado religioso de um ser todo-poderoso que se deve adorar, satisfazer e apaziguar e que, em recompensa, dá aos crentes saúde, riqueza, vida longa ou tudo isso. Em vez disso, os Cabalistas identificam Deus com a Natureza, toda a Natureza. As declarações mais inequívocas sobre o significado do termo “Deus” foram feitas por Baal HaSulam, cujos escritos explicam que Deus é sinônimo de Natureza.

Por exemplo, em seu ensaio “A Paz”, ele escreve (em um trecho ligeiramente editado): “Para evitar ter de usar as duas línguas a partir de agora, Natureza e um Supervisor, entre os quais, como já demonstrado, não há diferença (…) é melhor para nós (…) aceitarmos as palavras dos Cabalistas que HaTeva (A Natureza) é o mesmo (…) que Elokim (Deus). Então, eu vou ser capaz de chamar as leis de Deus ‘mandamentos da

Natureza’, e vice-versa, porque são uma e a mesma coisa, e não precisamos discutir o assunto mais.”xi

“Aos 40 anos de idade”, escreve Maimônides, “Abraão veio a conhecer o seu Criador”,  a única lei da Natureza, que cria todas as coisas. Abraão, porém, não guardou isso para  si mesmo: “ele começou a dar respostas ao povo de Ur dos Caldeus e a conversar com eles e a dizer-lhes que o caminho em que eles estavam andando não era o caminho da verdade.” Como Galileu, depois dele, e muitos outros grandes precursores ao longo da história, Abraão foi confrontado pelo que estava estabelecido, que, em seu caso, era Nimrod, o rei de Babel.

Midrash Rabbah, um antigo texto escrito por sábios hebreus na século V d.C., apresenta uma vívida descrição de um confronto de Abraão com Nimrod, bem como uma  divertida passagem acerca do elevado fervor de Abraão. “Terah [pai de Abraão] era um adorador de ídolos [que também ganhava a vida construindo e vendendo as estátuas na loja da família]. Uma vez ele foi para um determinado lugar e disse a Abraão para se sentar ali com ele. Um homem entrou e quis comprar uma estátua. Ele [Abraão] lhe perguntou: ‘Quantos anos você tem?’ E o homem respondeu: ‘cinquenta ou sessenta’. Abraão lhe disse: ‘Ai daquele que tem sessenta anos e adora uma estátua com apenas  dias de vida.’ O homem ficou envergonhado e saiu.”

“Em outra ocasião, uma mulher chegou com uma tigela de semolina. Ela lhe disse: ‘Eis aqui o sacrifício perante as estátuas.’ Abraão levantou, pegou um martelo,  quebrou  todas as estátuas e colocou o martelo nas mãos da maior delas. Quando seu pai chegou, lhe perguntou: ‘Quem fez isso com elas?’ Ele [Abraão] respondeu: ‘Uma mulher veio com uma tigela de semolina e me disse para sacrificar perante elas. Eu sacrifiquei, e  uma delas disse: ‘Vou comer primeiro’, e a outra disse: ‘Vou comer primeiro.’ A maior se ergueu, pegou o martelo e quebrou as outras.’ Seu pai disse: ‘Você está me enganando? O que elas sabem?’ E Abraão respondeu: ‘Será que seus ouvidos ouvem aquilo que a sua boca está dizendo?’

Nesse momento, Terah sentiu que não podia mais disciplinar seu filho impertinente.  “Ele [Terah] levou [Abraão] e entregou-o a Nimrod [que não era apenas rei de Babel, mas também proficiente nas práticas e crenças locais]. Ele [Nimrod] lhe disse: ‘Adore o fogo.’ Abraão respondeu: ‘Eu deveria adorar a água, que extingue o fogo?’ Nimrod respondeu: ‘Cultue a água!’ Ele lhe disse: ‘Então eu deveria adorar a nuvem, que transporta a água?’ Ele lhe disse: ‘Cultue a nuvem!’ Ele [Abraão] lhe disse: ‘Nesse caso, eu deveria adorar o vento, que dispersa as nuvens?’ Ele lhe disse: ‘Adore o vento.’ Ele [Abraão] lhe disse: ‘E se nós adorarmos o homem, que se submete ao vento?’ Ele [Nimrod] lhe disse: ‘Você fala demais, eu adoro só o fogo. Eu vou jogá-lo nele e deixar que o Deus que você adora venha salvá-lo!’

Haran [ irmão de Abraão] estava lá. Ele disse: ‘Em qualquer caso, se Abraão vencer, eu vou dizer que concordo com Abraão, e se Nimrod tiver a vitória, vou dizer que  concordo com Nimrod.’ Desde que Abraão desceu ao forno e foi salvo, perguntaram a ele [Haran]: ‘Com quem você está?’ Ele lhes disse: ‘Eu estou com Abraão.’ Eles o levaram e o  jogaram no  fogo, e ele  morreu na  presença de  seu pai.  Assim foi dito: ‘E morreu Harã, na presença de seu pai, Terah’”.xii

Assim, Abraão resistiu com sucesso a Nimrod, mas foi expulso da Babilônia e partiu para a terra de Haran (pronuncia-se  Charan,  para distinguir de  Haran,  filho  de Terah).

Abraão, o precursor de Babilônia, porém, não impediu a circulação de sua descoberta só porque foi exilado da Babilônia. Descrições elaboradas de Maimônides nos dizem: “Ele começou a falar para o mundo inteiro, para alertá-los de que há um só Deus para o mundo inteiro (…) Ele contava para todos, vagando de cidade em cidade e de reino em reino, até que chegou à terra de Canaã (…)

E uma vez que elas [as pessoas nos lugares em que ele vagava ] se reuniam em torno dele e lhe perguntavam sobre suas palavras, ele ensinou a todos (…) até que ele as  trouxe de volta ao caminho da verdade. Por fim, dezenas de milhares reunidos em torno dele, e eles são as pessoas da casa de Abraão. Ele plantou esse princípio em seus corações, escreveu livros sobre isso e ensinou ao seu filho, Isaac. E Isaac sentou-se e ensinou e advertiu e informou Jacob e nomeou-o professor para se sentar e ensinar (…)  E Jacó, o Patriarca, ensinou a todos os seus filhos e separou Levi e nomeou-o como cabeça e mandou-o sentar-se e aprender o caminho de Deus (…)”xiii

Para garantir que a verdade fosse levada através das gerações, Abraão “ordenou a seus filhos para não cessarem de fazer nomeação após nomeação, dentre os filhos de Levi, de modo que o conhecimento não fosse esquecido. Isso continuou e se expandiu nos filhos de Jacó e naqueles que os acompanhavam.”xiv

O resultado surpreendente desses esforços foi o nascimento de uma nação que sabia as mais básicas leis da vida, a Teoria de Tudo: “E uma nação que conhece o Criador foi feita no mundo”xv

De fato, Israel não é apenas o nome de um povo. Em hebraico, a palavra Israel (Ysrael) consiste de duas palavras: Yashar (reto, direto) e El (Deus). Israel designa a mentalidade de querer descobrir a lei da vida, o Criador. Em outras palavras, Israel não é uma atribuição genética, é sim o nome ou a direção do desejo que levou Abraão a suas descobertas. Geneticamente, os israelitas eram em sua maioria babilônios, bem como membros de outras nações que se juntaram ao grupo de Abraão. Isso era óbvio para os antigos israelitas. Como Maimônides escreveu, eles tinham os seus professores,  os Levis, e foram ensinados a seguir as leis essenciais da vida.

Hoje, no entanto, não estamos cientes do fato de que “Israel” refere-se ao desejo de conhecer a lei básica da vida, o Criador, e não a uma linhagem genética. Quase 2000 anos de ocultação da verdade, desde a ruína do Segundo Templo, praticamente eliminaram a verdade de que a Cabalá, a ciência que ensina a Natureza (de Deus), ou seja, a unidade, é para todas as pessoas no mundo, assim como Abraão direcionou esse conhecimento para todo o povo em Babel e mais tarde “começou a falar para o mundo inteiro”, como descrito por Maimônides.

Através dos anos, apenas Cabalistas mantiveram essa verdade viva. Cabalistas como Elimelech de Lizhensk,xvi Shlomo Ephraim Luntschitz,xvii Chaim ibn Attar,xviii Baruch Ashlagxix e muitos outros escreveram em palavras claras: Ysrael significa Yashar El (Israel significa direto para Deus).

Além disso, a necessidade de descobrir essa força, que descreveremos nos capítulos seguintes, é tão  pertinente hoje como  sempre. Nada mudou  na Natureza desde a época de Abraão, e a lei de unidade e unicidade ainda é a única força que cria, rege e sustenta  a vida.

Na verdade, a nossa necessidade de saber é, hoje, mais pertinente do que nunca, porque, no tempo de Abraão, a humanidade teve inúmeras estradas pelas quais se dispersou e terra de sobra para habitar. Hoje, no entanto, temos uma comunidade global,  e cada  crise ocorre em uma escala global. Os erros que cometemos cobram seu preço em todo  o mundo. A descoberta de Abraão nos ajuda a adicionar força de vida aos  nossos cálculos e planos, o que a torna fundamental, a informação que salva vidas.

A força que Abraão descobriu e descreveu a seus alunos é a própria força que levou Napoleão a conquistar mais do que ele poderia governar e que ainda está conduzindo a China a se globalizar ao invés de se isolar. Essa força, no entanto, também está por trás das vozes que saúdam o protecionismo e a separação. Em um mundo global, o protecionismo pode significar o fim da nossa civilização. Nossa única esperança é unir- nos, porque a unidade é a direção da força que impulsiona toda a vida. Nosso desafio, portanto, é aprender a nos unir. É possível e plausível, mas, em um momento de crise, será necessário reconhecer a força de vida, gerar um esforço mútuo de cooperação e colaboração e viver pelos ditames dessa  lei.

Capítulo 1: A Busca do Homem pela Unidade

Do livro “Interesse Próprio vs. Altruísmo na Era Global”

Quando a pior crise financeira desde a Grande Depressão eclodiu em agosto de 2008, muitos políticos e financistas em posições-chave enfatizaram a necessidade de unidade   e cooperação. Eles expressaram a necessidade de conter o quadro egocêntrico da mente dominando Wall Street e expressaram um medo de tendências separatistas e protecionistas. Manchetes como a de The Economic Times, “Líderes  Mundiais  Procuram a Unidade para o Combate à Crise Financeira”, prevaleceram em jornais de todo o mundo, sinalizando uma disposição geral para a união e cooperação diante da incerteza econômica.

À primeira vista, esse espírito é compreensível, senão necessário. Afinal, financistas do mundo sabiam que suas instituições estavam ligadas entre si tão firmemente que, se  uma falhasse, as outras falhariam também, e os políticos foram advertidos de que, se  não salvassem os bancos em seus países, suas próprias economias entrariam  em colapso, precipitando um efeito dominó que faria  a economia global despencar.

Frente a uma crise, no entanto, é natural fazer o oposto da união: fechar-se e proteger o que é seu. Essa parece ser uma rota mais segura do que unir forças com “estrangeiros”, especialmente quando os estrangeiros podem ser considerados culpados ou, pelo menos, colaboradores na ocorrência dessa situação.

Assim, os Estados Unidos ─ país geralmente considerado como principal perpetrador do surto e da rápida escalada da crise financeira ─ não sofrem de isolamento, porque a interconexão da economia mundial obriga economias como a da China a  comprar dólares e, dessa forma, prover o sustento da economia americana.

Para os políticos, parece mais natural colocar seus países em primeiro lugar, como revelam as tarifas British Corn Laws, do século XIX, e o ato Buy American, do Presidente Hoover, de 1933. Como o delicado equilíbrio entre cooperação e interesses próprios ocila para frente e para trás, investigamos a destruição causada pela crise financeira e descobrimos que a maioria das vozes clama por união e denuncia o protecionismo e a separação. Por que isso acontece?

Se considerarmos essa questão por um aspecto puramente econômico ou psicológico, não chegaremos a uma resposta conclusiva. Quando a analisamos a partir da perspectiva da ciência da Cabala, vemos, no entanto, que as forças envolvidas nas relações internacionais, e na verdade em qualquer relação, são forças de integração, não de isolamento. Elas são muito mais poderosas do que qualquer processo racional ou irracional na tomada de decisão e determinam os nossos movimentos “nos bastidores”.

Em nível internacional, essas forças determinam comércio globalizado, política,  tratados, conflitos e ecologia. Em nível nacional, determinam tendências em educação, política social, mídia e economia local. Em nível pessoal, elas determinam nossas relações com nossas famílias e, no nível mais profundo da existência, determinam a evolução ─ a nossa e a de todos os outros elementos da Natureza.

Quando compreendermos essas forças, entenderemos por que Napoleão, por exemplo, mordeu mais do que podia mastigar quando tentou conquistar a Rússia,  por que Hitler fez o mesmo  (e no  mesmo  país), e por que Bernard Madoff não parou até ser detido. A síndrome da “ponte longe demais” é uma armadilha tipicamente humana a que os maiores líderes do mundo e os futuros líderes não conseguem resistir. De fato, as forças que nos levam a nos comportar como o fazemos são tão parte de nós e de nosso mundo que não reconhecê-las é um risco que não devemos correr.

Para compreender as forças e os elementos que criam a realidade e alteram seu curso, é preciso primeiramente conhecer suas origens e seus destinos finais. Caso contrário, tentar compreender a realidade é como tentar compreender o funcionamento interno do motor de um carro, a conexão com a embreagem, a maneira como a embreagem muda a velocidade das rodas, e assim por diante, sem explicar que um carro é uma máquina construída para transportar pessoas com segurança, conforto e rapidamente de um lugar A para um lugar B. Sem explicar o propósito do carro, de que adianta discutir sua estrutura?

Como a ciência, a Cabalá investiga o funcionamento interno da realidade. Diferentemente da ciência, porém, que observa os fenômenos e oferece teorias quanto a seu objetivo final, a Cabalá vê primeiro o objetivo e, a partir daí, explica a estrutura.  Esse objetivo, como explica a Cabalá, é que cada pessoa no mundo descubra a força única e fundamental que cria e governa toda a vida. Em outras palavras, o objetivo da Cabalá é que cada pessoa descubra a força criativa da vida, a obtenha e colha todos os benefícios que essa descoberta implica.

O Cabalista do século XX, Yehuda Ashlag, conhecido como Baal HaSulam (Dono da Escada) por seu Sulam (Escada), comentário sobre O Livro do Zohar, descreveu a Cabalá e o propósito da vida da seguinte maneira: “Esta sabedoria é nada mais, nada menos do que uma sequência de raízes, que pendem por meio de causa e consequência, por regras fixas e determinadas, entrelaçadas com um objetivo único e elevado, descrito como ‘a revelação do Criador para as criaturas neste mundo’”.

Nossas vidas são o veículo para alcançarmos esse propósito. Por isso os Cabalistas respeitam os fenômenos do nosso mundo físico, histórico e social como fases  em direção a um objetivo final, e é dessa perspectiva que este livro irá discutir a história da humanidade e seu estado atual.

Introdução

Do livro “Interesse Próprio vs. Altruísmo na Era Global”

No momento em que estas palavras são escritas, o mundo ainda está se recuperando da mais longa recessão desde a Segunda Guerra Mundial. Dezenas de milhões de pessoas em todo o mundo perderam seus empregos, suas economias, suas casas, mas, o mais importante,                suas                esperanças para o                      futuro. Nossa saúde, ao que parece, não é mais saudável do que a nossa riqueza. A medicina moderna, orgulho e alegria da civilização ocidental, está às voltas com o reaparecimento de doenças que se acreditavam extintas. De acordo com um relatório publicado pelo Conselho de Saúde Global, “Doenças que se acreditava estarem sob controle têm novamente voltado como grandes ameaças globais. O surgimento de cepas resistentes  de bactérias, vírus e outros parasitas coloca novos desafios para o controle das doenças infecciosas. Coinfecção com múltiplas doenças cria obstáculos para prevenção e tratamento                                                  de                      infecções.” A Terra, também, não é tão hospitaleira como antes. Livros como os de James  Lovelock, A Vingança de Gaia, Ervin Laszlo, O Ponto do Caos, e filmes como o de Al Gore, Uma verdade inconveniente, são apenas três exemplos de uma cavalgada de relatórios    alarmantes    sobre    a     deterioração     do     clima     da     Terra     .   Como o aquecimento global derrete as calotas polares, o nível do mar sobe. Isso já causou mudanças dramáticas e trágicos acontecimentos. Um relatório da Stephan Faris na revista Scientific American lista alguns dos locais já afetados  pela  mudança climática. Em Darfur, os confrontos entre tribos nômades e sedentárias que estourou devido a uma seca de décadas se transformou em uma rebelião contra o descaso do governo sudanês. Posteriormente, a crise se espalhou para o Chade e a República Centro-Africana.

Também nesse relatório, a nação insular Kiribati, do Pacífico, declarou suas terras inabitáveis e pediu ajuda para evacuar sua população. Em março de 2009, Peter  Popham, escritor de The Independent, forneceu outro ângulo para a situação do  clima: “O aquecimento global está dissolvendo as geleiras alpinas tão rapidamente que a Itália e a Suíça decidiram que devem novamente desenhar suas fronteiras nacionais para ter em conta a nova realidade.”.

Um resultado mais trágico da mudança climática é a fome, causada por secas prolongadas em algumas áreas e inundações constantes em outras. De acordo com o Programa Alimentar Mundial, cerca de um bilhão (1.000.000.000) de pessoas em todo o mundo está constantemente com fome. Pior ainda, mais de nove milhões (9.000.000) de pessoas morrem anualmente de fome e de causas relacionadas, mais da metade são crianças. Isso significa que hoje, na era mais avançada tecnologicamente da história da humanidade, uma criança morre a cada seis segundos devido à falta de comida e água.

Em nossas casas, os problemas são muitos também. O New York Times anunciou que,  de acordo com um censo divulgado pelo American Community Survey, as taxas de divórcio aumentaram a tal ponto que hoje há mais casais não casados nos Estados Unidos do que casados. É a primeira vez na história que as famílias monoparentais são a norma,           as           de           mãe           e           pai           são           a           exceção. Muitos cientistas, políticos, ONGs e organizações ligadas à ONU alertam que a humanidade  está enfrentando  um risco  de catástrofes  sem precedentes em uma escala global. Qualquer coisa, desde a mutante gripe aviária até uma guerra nuclear ou um terremoto, poderia acabar com milhões e bilhões seriam levados à miséria.

Crises, no entanto, têm ocorrido ao longo da história. Nossa época não é a primeira em que a humanidade tem estado em risco. A pandemia da Peste Negra do século XIV e as duas Guerras Mundiais facilmente superam o perigo que a nossa situação atual apresenta. O que distingue a atual crise das anteriores, porém, é a tensão que caracteriza o estado atual da humanidade. Nossa sociedade tem ido ao extremo em duas direções que parecem entrar em conflito: a globalização e a interdependência de um lado, e o aumento da alienação e o narcisismo pessoal, social e político de outro. E isso é uma receita para um desastre como o mundo jamais viu, seja no setor financeiro  ou para  além dele.

Hoje a globalização nos diz respeito muito mais que a interdependência financeira. Tornamo-nos globalmente interligados em todos os domínios da vida: os computadores  e TVs que usamos para nos entreter vêm (principalmente, mas não exclusivamente) da China, de Taiwan e da Coreia. Os carros que dirigimos são montadas (mais uma vez, principalmente) no Japão, na Europa e nos Estados Unidos, mas suas peças são  feitas em muitos outros países. As roupas que vestimos muitas vezes chegam da Índia e da China, enquanto a comida em nossos refrigeradores vem de todo o mundo.

Além do mais, em todo o mundo as pessoas assistem a filmes de Hollywood e  aprendem inglês aos milhões. De fato, dos cerca de 1,4 bilhões de falantes de inglês a nível mundial, apenas 450 milhões são falantes nativos, e só a China produz mais de 20 milhões de novos falantes de inglês a cada ano, relata o Asia Times em uma reportagem do dia15 de setembro de 2006, intitulada “Inglês nativo está perdendo seu poder”.

Em 8 de março de 2009 o economista da Wachovia Corp, Mark Vitner, fez uma descrição bastante palpável da situação globalizada do mundo, quando descreveu a interconexão dos mercados de crédito na MSNBC: “É como tentar desembaralhar ovos mexidos. Isso não pode ser feito facilmente. Eu não sei se isso pode ser feito de alguma maneira.”i

O problema com a globalização, no entanto, não é apenas que nos torna interligados, também nos torna interdependentes, e em vez de usarmos essas interconexões para prosperar, nos engajamos em um constante cabo de guerra. O que aconteceria com os países ricos em petróleo se o mundo de repente mudasse para as energias eólica e solar? O que aconteceria se a China parasse de comprar dólares dos Estados Unidos? O que aconteceria com China, Japão, Índia, Coreia se os americanos não tivessem dólares para comprar os bens produzidos na Ásia? E se os turistas ocidentais deixassem de viajar, o que seria das centenas de milhões de pessoas em todo o mundo que sustentam suas famílias graças ao hedonísmo ocidental ?

O jornalista Fareed Zakaria eloquentemente descreveu esse emaranhado em um artigo  da Newsweek, intitulado “Saindo das carteiras: o mundo precisa dos norte-americanos gastando”: “Se os deuses da economia me dissessem que eu poderia ter a resposta a uma pergunta sobre o destino da economia global (…) gostaria de perguntar ‘Quando o consumidor americano começará a gastar novamente?'” Na verdade, nós nos tornamos uma aldeia global, totalmente dependentes uns dos outros para o nosso sustento.

A interdependência, no entanto, é apenas uma parte do quadro complicado de hoje. Embora estejamos crescendo cada vez mais globalizados, estamos também nos tornando cada vez mais centrados em nós mesmos ou, como os psicólogos Jean M. Twenge e Keith Campbell descrevem, “cada vez mais narcisistas”. Em seu livro perspicaz, A epidemia do narcisismo: vivendo na Era do Direito, Twenge e Campbell falam sobre ao que eles se referem como “o aumento incessante do narcisismo em nossa cultura” e os problemas que ele causa. Eles explicam que “Os Estados Unidos estão atualmente sofrendo de uma epidemia de narcisismo. (…) traços de personalidade narcisista aumentaram tão rápido quanto a obesidade.” Pior ainda, “O aumento do narcisismo está se acelerando, com pontuações crescendo mais rápido na década de 2000 do que em décadas anteriores. Em 2006, 1 em cada 4 estudantes universitários concordou com a maioria dos itens em uma medida padrão de traços narcísicos. Hoje, como o cantor  Little Jackie coloca, muitas pessoas sentem que “sim senhor, todo o mundo deve girar em torno de mim.'” No dicionário Webster, o narcisismo é definido como “egoísmo” e isso, claramente falando, significa que nos tornamos insuportavelmente egoístas.

Assim, nosso problema é duplo: por um lado, somos interdependentes; por outro lado, estamos nos tornando cada vez mais narcisistas e alienados. Estamos tentando levar  duas formas de vida que simplesmente não se encontram: a interdependência e a alienação. Talvez seja por isso que passemos incontáveis horas conversando com “amigos virtuais” em redes sociais online, mas sejamos muitas vezes frios e insensíveis com nossos parentes em casa. Se fôssemos simplesmente interdependentes, gostaríamos de nos unir, apoiar uns aos outros e ser felizes. Alternativamente, se fôssemos simplesmente egoístas, separar-nos-íamos e viveríamos por nós mesmos. Mas se nós somos interdependentes e egoístas, nenhuma das duas formas funciona!

E esta é, em essência, a raiz da crise: a nossa interdependência exige de nós que trabalhemos juntos, mas o nosso egoísmo nos leva a enganar e explorar uns aos outros. Como resultado, os sistemas de cooperação que trabalhamos tão duro para construir se quebram, levando a contínuas crises.

Assim, o objetivo deste livro é duplo: 1) lançar luz sobre a causa da nossa interdependência, por um lado, e nosso egocentrismo, por outro, e 2) descrever brevemente um modus operandi viável para combinar essas características aparentemente conflitantes em nosso benefício. Para abordar o primeiro objetivo, vou explicar o que eu aprendi na Cabalá sobre a estrutura da Natureza e, particularmente, sobre a natureza humana. Para abordar o segundo objetivo, vou combinar as ideias do grande Cabalista do século 20, Yehuda Ashlag, assim como as de outros grandes Cabalistas, com sugestões de cientistas contemporâneos e estudiosos de outras disciplinas.

Na Sabedoria da Cabalá, descobri o que eu acredito ser uma solução viável para os problemas globais atuais e me sinto grato por me ter sido dada a oportunidade de apresentá-la. É minha esperança e, posso dizer, convicção de que, a partir dos conceitos que a Cabalá oferece, possamos salvar a nós mesmos, bem como a Grande Bola Azul na qual vivemos.