Gênesis

Do livro “Interesse Próprio vs. Altruísmo na Era Global”

Em seu livro A Árvore da Vida, o grande Cabalista do século XVI, Isaac Luria (o Ari), fundador da Cabalá Luriânica, hoje escola predominante da Cabalá, escreveu: “Saiba que antes de as emanações serem emanadas e as criaturas criadas, uma Luz Superior, Simples preenchia toda a realidade. E não havia lugar vago, como uma atmosfera vazia  e um vazio, mas tudo era preenchido pela Luz simples e ilimitada.”42

Desde então, apenas um Cabalista se aventurou a escrever uma explicação abrangente acerca dessas frases profundas, como também introduziu um comentário completo sobre O Livro do Zohar: o Cabalista Rav Yehuda Ashlag, Baal HaSulam. Em seu comentário de seis volumes sobre os escritos do Ari, conhecido como Talmud Eser Sefirot (O Estudo  das Dez Sefirot),  Baal HaSulam explica  que  a  Luz  à  qual o  Ari se  refere   é “Todas as sensações agradáveis e concepções neste mundo.”43 Ele também define “Luz” como “tudo, com exceção da substância dos vasos [desejo de receber].”44

Em outras palavras, existem apenas dois “seres” na existência: o desejo de doar, que Ashlag define como “luz”, “Criador” ou “prazer”, e o desejo de receber prazer, de deleitar-se, que ele chama de “um vaso”, “a criatura” ou “o ser criado.” Para entender como toda a realidade pode surgir de apenas dois desejos, precisamos examinar mais profundamente a forma como eles interagem.

Quatro Estágios e a Raiz da Criação

Gravidade, eletricidade e todas as outras forças da natureza são fenômenos atemporais. Em outras palavras, não se pode indicar um ponto específico no tempo em que  elas foram criadas, porque as forças da natureza não são eventos específicos; elas são potenciais ou campos que cobrem a totalidade do espaço-tempo. Elas se manifestam sob determinadas condições e, dados os instrumentos adequados, pode-se detectar a sua existência.

Para provar a existência da energia elétrica, é necessária uma resistência de algum tipo, como uma lâmpada ou um medidor de corrente. Sem algo que resista ao fluxo da corrente elétrica, nunca poderíamos saber que a eletricidade estava fluindo através dele e jamais poderíamos descobrir a existência da eletricidade. Da mesma maneira, para provar a existência da gravidade, precisamos observar seus efeitos sobre a massa física e para descobrir a luz, precisamos de um objeto que a luz ilumine, o que  significa bloquear a luz e refleti-la de volta a nossos olhos.

Exatamente da mesma forma, os Cabalistas descobriram o desejo de doar por meio da interação desse desejo com seu resistor ─ seus próprios desejos de receber. Quando refinaram e calibraram suas resistências, ou seja, os desejos de receber, eles foram capazes de detectar a força que operava esses desejos. Foi assim que Abraão descobriu que a força que operava os seus desejos e o resto da realidade era um desejo de doar. Esse é o conhecimento que Abraão passou para seus filhos e alunos e esse ainda é o conhecimento que os Cabalistas passam de professor para aluno e agora para o mundo inteiro.

Vale lembrar: a diferença entre um Cabalista e outro não está no conhecimento que cada um transmite, mas na linguagem e no estilo que cada um usa para transmiti-lo. A razão pela qual eu estou contando principalmente com os escritos de Ashlag não é porque ele possuísse conhecimento mais extenso do que, digamos, o Ari. Estou usando seus  escritos simplesmente porque ele é o Cabalista mais recente e escreveu em estilo mais contemporâneo. Ele é, portanto, o mais fácil de ser entendido por um leitor do século XXI com pouca ou nenhuma experiência em Cabalá. Quanto mais avançamos no tempo, mais difícil se torna compreender o sentido pleno dos textos cabalísticos.

Voltando ao tema, em O Estudo das Dez Sefirot, Ashlag nos diz que esse desejo de doar criou o desejo de receber como um desdobramento necessário do seu desejo de doar.45 Em outras palavras, porque o desejo é um desejo de doar, ele criou algo que desejasse receber. Assim como é impossível explicar o que é dia sem também entender o que é noite, ou entender o conceito de “lado esquerdo” sem ter o conceito de “lado direito”, da mesma forma é impossível perceber o desejo de receber sem perceber o desejo de doar.

Para colocar as coisas no contexto correto, quando os Cabalistas falam do Criador, eles estão se referindo ao desejo de doar, e quando falam da Criação, estão se referindo ao desejo de receber o que o Criador doa. Além disso, quando eles apresentam um diálogo entre o Criador e as criaturas, como nós encontramos na Bíblia, eles estão realmente introduzindo uma interação específica entre o desejo de doar e o desejo de receber, e não uma troca de vocalismos entre um agregado de proteínas e uma voz nas nuvens.

A esse respeito, na conclusão de sua introdução a O Estudo das Dez Sefirot (item 156), Ashlag toma cuidado especial ao nos advertir: “No entanto, há uma condição estrita  para o envolvimento nessa sabedoria ─ não materializar os assuntos a partir da imaginação ou de formas físicas. Isso é considerado violação, ‘Tu não farás para ti imagem de escultura, nem qualquer espécie de semelhança.’ (…) Para salvar os leitores de qualquer materialização, eu escrevi o livro O Estudo das Dez Sefirot, no qual compilei dos livros do Ari todos os principais ensaios sobre a explicação das dez Sefirot em uma linguagem mais simples e fácil.”46

Assim, na base da existência não existe matéria, mas formas do desejo de receber prazer criadas pelas interações com o Criador ─ o desejo de doar prazer.

Para fazer a ponte entre essa abordagem e um território mais familiar, imagine-se um raio. Para os gregos antigos, o raio era a arma tradicional de Zeus. Para nós, se consultarmos a Enciclopédia Britânica47, esse mesmo raio é meramente “A descarga visível de eletricidade que ocorre quando uma região de uma nuvem adquire uma carga elétrica em excesso suficiente para quebrar a resistência do ar.”

Da mesma forma, compreender o verdadeiro sentido da história de Abraão requer uma explanação feita por quem adquiriu conhecimento suficiente para explicá-la de maneira prosaica, racional, ou seja, um Cabalista, e de preferência um que possua conhecimento substancial e suficientes habilidades didáticas, tal como Ashlag.

Indo Atrás do Pensamento da Criação

No “Prefácio à Sabedoria da Cabalá”48, Baal HaSulam divide o início da Criação em cinco etapas e uma restrição, mas podemos reuni-las em três grupos. Pense nos dois primeiros grupos como sendo um carro e o combustível para seu motor e imagine que o terceiro grupo é o motorista.

O primeiro grupo contém apenas o Estágio Zero, a Raiz. Esse é o desejo de doar, a energia que cria e sustenta o carro chamado “Criação” (um modelo muito antigo, que não é mais fabricado).

O segundo grupo ─ Estágios Um e Dois ─ constrói uma “plataforma” para a evolução. Esse é o próprio carro. Em certo sentido, a plataforma que os dois estágios construíram se assemelha ao que Richard Dawkins descreveu em O Gene Egoísta como “A sopa primeva”49, o substrato oceânico que continha os ingredientes para o início da vida.

O terceiro grupo ─ Estágios Três e Quatro ─ é “o motorista”. Sua função é ligar o motor de evolução ─ a interação entre os desejos. Como explicaremos abaixo e no próximo capítulo, a restrição é a roda pela qual a criação é impulsionada em direção a seu propósito: descobrir o Pensamento da Criação.

Estágios Zero e Um

Primeiramente, um comentário geral sobre os estágios: depois que a Cabalá ganhou popularidade nos últimos anos, alguns de seus termos aparecem com diferentes acepções.  O  termo  Sefirot  é  frequentemente  mencionado  em  relação  à  origem  da Criação. É possível descrever o processo da Criação usando os nomes das Sefirot em  vez de estágios, mas isso pode complicar o assunto desnecessariamente. Para verificar como as Sefirot e as quatro fases referem-se ao mesmo processo, consulte-se o ensaio “Prefácio à Sabedoria da Cabalá”50.

Em termos Cabalísticos, a existência do desejo de doar sem o desejo de receber é chamado “Estágio Raiz” ou “Estágio Zero”. O Estágio Raiz é  imediatamente seguido por seu ramo obrigatório ─ “Estágio Um” ─, o desejo de receber, que está permeado com a abundância fornecida a ele pela Raiz, o desejo de doar.

Como resultado, nenhum elemento da existência, de partículas subatômicas a galáxias em expansão no universo, escapa do “binômio” dar–receber. Isso pode aparecer na forma de quente vs. frio, seco vs. molhado, pequeno vs. grande, centrífugo vs.  centrípeto, energia vs. matéria, etc., mas todos derivam dos opostos primordiais: dar e receber. Para ilustrar essa interação, eu uso uma flecha para baixo para denotar o desejo de doar, e uma tigela ou recipiente (usualmente chamado “vaso”) para denotar o desejo de receber (Figura 1)

Figura 1: O Estágio Raiz é imediatamente seguido por seu ramo obrigatório ─ Estágio Um –, que é o desejo de receber, permeado pela abundância fornecida pelo desejo de doar. A Raiz é chamada “Luz” e o desejo de receber, “vaso”.

Estágio Dois

O resultado do encontro entre os dois desejos no Estágio Um é o Estágio Dois. Aqui a interação real entre esses dois desejos realmente acontece. Para entender a mudança que ocorre entre o Estágio Um e o Estágio Dois, considere a admiração de uma criança por seus pais. Devido ao fato de que as crianças, especialmente no princípio da infância, idolatram os pais, elas se esforçam em imitá-los. Elas observam cada movimento dos pais atentamente (a tendência é os meninos observarem o pai e as meninas observarem a mãe), elas “estudam” o comportamento de seus pais e tentam seguir-lhes o exemplo.

Estudos contemporâneos mostram como as crianças estão atentas à orientação de seus pais. Em Perspectivas na Imitação: Da Neurociência às Ciências Sociais, Dr. Andrew Meltzoff e Wolfgang Prinz, professor da Universidade de Cambridge, Reino Unido, escrevem: “Os pais proporcionam a seus jovens um aprendizado sobre a maneira de agir como membro de sua cultura específica muito tempo antes que a instrução verbal seja possível. Uma grande variedade de comportamentos ─ desde usar ferramentas até os costumes sociais ─ é passada de uma geração a outra por meio da aprendizagem imitativa.”51

Além disso, o best-seller do Dr. Benjamin Spock, Cuidados com o Bebê e a Criança, dirigido aos pais, fornece uma descrição tão completa desse processo, que me sinto obrigado a apresentá-lo aqui praticamente na íntegra:

“A identificação é muito mais importante do que brincar. É assim que o caráter é construído. Depende mais do que as crianças percebem em seus pais e modelam em si mesmas depois, do que daquilo que os pais tentam ensinar-lhes em palavras. Essa é a forma como ideais e atitudes básicos das crianças são estabelecidos ─ para com o trabalho, para com as pessoas, para consigo mesmas (…) É assim que elas aprendem a ser o tipo de pais que serão daqui a vinte anos, como se pode prever ao se ver a forma carinhosa ou ao ouvir suas repreensões quando brincam com suas bonecas.”

Consciência de gênero. É nessa idade que a menina se torna mais consciente de que é mulher e vai crescer para ser uma mulher. Ela, então, observa sua mãe com atenção especial e tende a moldar-se à imagem de sua mãe: como sua mãe se sente em relação ao marido e ao sexo masculino em geral, em relação  às mulheres, em relação  a seus filho e filha, em relação ao trabalho e às tarefas domésticas. A menina não se tornará uma cópia exata de sua mãe, mas certamente será influenciada por ela em muitos aspectos.”

“Um garoto nessa idade percebe que está a caminho de se tornar um homem e, portanto tenta seguir predominantemente o padrão de seu pai: como seu pai se sente em relação à sua mulher e ao sexo feminino em geral, em relação aos outros homens, em relação a  seu filho ou filha, em relação ao trabalho fora e dentro de casa.”52

E assim como uma criança deseja crescer para ser como seu pai, a Segunda Fase na evolução do desejo é uma expressão da vontade do desejo de receber (Estágio Um) de ser como seus pais ─ o desejo de doar (a Raiz). Isso acontece porque o desejo de  receber ─ o “fruto” do desejo de dar ─ do Estágio  Um reconhece a  superioridade da Raiz e deseja ser como  o seu progenitor. E porque o  único  exemplo  que o Estágio Um recebe da Raiz é o de dar, no Estágio Dois o desejo de receber começa a querer doar também.

Anteriormente dissemos que a base da existência são formas do desejo de receber, criadas pelas interações com seu criador ─ o desejo de dar. Assim, a partir de duas reações naturais e “automáticas” à doação, dois desejos opostos emergem: receber (no Estágio Um) e doar (no Estágio Dois). As várias combinações desses dois desejos formam a base de cada objeto, cada acontecimento e toda evolução que ocorre em nosso mundo, inclusive nós ─ nossos corpos, nossos pensamentos e nossas ações.

Assim como uma criança deseja se tornar seu modelo parental, na raiz do desejo de dar no Estágio Dois encontra-se o desejo de receber o status superior do progenitor, poder e conhecimento. Em outras palavras, a Segunda Fase é o desejo de receber o status e a natureza da doação. Por essa razão, é melhor imaginar o Estágio Dois como um vaso (desejo de receber) que quer doar, ou “vaso de doação”. Por isso, a seta que designa esse desejo aponta para fora, em direção ao Criador (Figura 2).

O Estágio Dois, porém, é mais que um novo desejo. Ao querer doar, o Estágio Dois é admitido em um novo estado de ser. Como não deseja mais receber, mas doar, necessita de alguém a quem doar. Assim, para ser como seu criador – um doador – o Estágio Dois deve agir positiva e favoravelmente em relação aos outros.

Figura 2: Na raiz do desejo de doar no Estágio Dois, encontra-se o desejo de receber. É melhor, portanto, imaginar o Estágio Dois como um vaso (desejo de receber)  que almeja doar, ou “vaso de doação”.

 

Por essa razão, o Estágio Dois, a força que nos compele a doar apesar de nosso desejo subjacente de receber, é a força que torna a vida possível. Sem ela, os pais não teriam filhos (a quem pudessem doar), nem se importariam com eles assim que nascessem; a vida não seria possível.

De fato, o melhor exemplo do Estágio Dois é o amor da mãe por seu filho. Quando consideramos o amor infinito, a compaixão e o esforço das mães na criação de seus bebês, sentimos reverência e nos admiramos de que tamanha devoção seja mesmo possível. E ainda, quando olhamos para o rosto de uma mãe enquanto ela amamenta, troca fraldas ou banha o bebê, vemos que frequentemente está radiante. Por que isso acontece? O que dá às mães a habilidade de não apenas suportar tamanha tensão, mas desejar e sentir prazer nisso?

A resposta é simples e toda mãe a conhece instintivamente: ao se doar a seu bebê, ela experimenta imensa alegria. Há um desejo de receber o prazer da maternidade (ou paternidade) por trás de cada decisão de trazer uma nova vida ao mundo. Sem isso, as pessoas não teriam bebês, a não ser por engano, e isso seria péssimo para as crianças.

Agora podemos ver por que a força inicial da Natureza é o desejo de doar e não o desejo de receber. Capturando concisamente a essência desse conceito está a cabalística definição de altruísmo feita por Baal HaSulam. Em 1940, ele publicou um artigo intitulado “A Nação”, em que escreve: “A força altruísta [desejo de doar] é como ondas centrífugas ─ uma força direcionada para fora… que flui de dentro para fora.”53

 

Estágio Três

Como Ashlag afirmou, a evolução dos desejos, que pendem por causa e efeito, é obrigatória, aderindo a regras fixas e determinadas. O próximo passo obrigatório para o Estágio Dois é começar a doar, por ser isso o que ele quer fazer. No Estágio Dois, porém, o desejo que recém criou o desejo de doar tem um problema para resolver: ele quer doar, mas tudo o que existe além de si mesmo (o desejo de receber com suas duas etapas) é o desejo de doar que o criou. Consequentemente, a única coisa que o Estágio Dois pode dar a seu criador é sua vontade de receber. Em outras palavras, ele irá receber, assim como no Estágio Um, mas com a intenção de dar prazer à Raiz, ou seja, ao criador. Esse modus operandi “invertido”, em que o ato é recepção, mas a intenção é doação, é um conceito completamente novo e, portanto, merece um novo nome ─ “Estágio Três” (Figura 3).

Pode parecer estranho para alguns, mas nós aplicamos esse modo de  ação rotineiramente em nossos relacionamentos. Pense em um jovem que  vem visitar  sua mãe após não vê-la por um longo tempo. É bastante provável que a mãe queira preparar algo para seu filho querido comer. E se o filho não estiver com fome? Ele não vai comer? Na maioria dos casos, ele vai comer e expressar seu prazer pela comida simplesmente para agradar à mãe.

Figura 3: No Estágio Três, o desejo de receber escolhe receber não porque desfruta, mas porque isso agrada à Raiz, o desejo de doar.

 

Nesse caso, o filho não está focado em seu próprio prazer, mas no prazer da mãe em vê- lo comer. No “Prefácio à Sabedoria da Cabalá”54, Baal HaSulam descreve esse modo de trabalho como uso parcial do desejo de receber, apenas o mínimo necessário para a recepção do prazer, mantendo o centro de atenção no prazer do doador pela aceitação do recebedor. Em nosso exemplo culinário, o filho deve ter algum apetite ou não será capaz de comer. Seu apetite, entretanto, pode não ser grande o suficiente para mudar sua intenção (ou atenção) de agradar a sua mãe para agradar a si mesmo.

Estágio Quatro

Quando o apetite do filho é leve o suficiente para ser subordinado a seu desejo de agradar a sua mãe, ele pode se concentrar em sua intenção de agradar, ao invés de em seu estômago. E se ele estivesse com muita fome e não tivesse comido o dia todo? Será que ele ainda seria capaz de ignorar o seu estômago roncando, se concentrar apenas no prazer de sua mãe e comer apenas para agradar a ela? Quando o Estágio Três começa a receber porque deseja agradar à Raiz, ele percebe que, quanto mais recebe, mais agrada a seu criador, a Raiz.

Em consequência, começa a querer receber mais e mais e mais. Finalmente, gostaria de receber tudo, assim como no Estágio Um, despertando, desse modo, todos os seus desejos de receber. Esse autoevocado desejo total de receber é chamado “Estágio Quatro”.

Há, contudo, uma diferença fundamental entre o Estágio Um e o Estágio Quatro: a relação com o doador. O Estágio Um não se relaciona com o doador, apenas com a abundância. Assim que “percebe” que há o desejo de doar que o criou, o vaso quer ser como o doador, e isso inicia o Estágio Dois. O Estágio Quatro percebe não só a existência do doador, mas também a benevolência e a primazia do doador, uma vez que foi o desejo de doar que iniciou a criação. E sendo um completo desejo de receber, o Estágio Quatro almeja receber não apenas a abundância que o Estágio Um recebe, mas  o status de primazia da Raiz (Figura 4).

Figura 4: Sendo um total desejo de receber, o Estágio Quatro deseja não apenas a abundância do Estágio Um, mas o status de primazia da Raiz.

 

Para receber esse status, no entanto, o Estágio Quatro deve ser semelhante ao Criador, e não o é. Ao contrário, é um desejo consciente de receber tudo ─  onipotência, onisciência e até mesmo a natureza do Criador. Menos do que isso estaria incompleto,  já que não seria exatamente idêntico ao Criador. Isso é o que Ashlag quer dizer, quando escreve no “Prefácio à Sabedoria da Cabalá”55 que o Estágio Quatro pretende atingir o Pensamento da Criação (Figura 5).

Figura 5: O Estágio Quatro deseja alcançar o Pensamento da Criação

 

Em outro ensaio, “A Entrega da Torá [Luz]”, Ashlag oferece uma bela explicação sobre a natureza da relação Criador-criado que ocorre no início da Criação: “Essa questão é semelhante a um homem rico que diariamente cumulava um homem do mercado com ouro, prata e todas as coisas desejáveis. E a cada dia dava-lhe mais presentes do que no dia anterior. Finalmente, o homem rico perguntou: “Diga-me, todos os seus desejos foram satisfeitos?” Ele [o homem do mercado] respondeu: “Nem todos os meus desejos foram satisfeitos; quão bom e agradável seria se todos os bens e coisas preciosas tivessem vindo a mim por meu próprio trabalho, como elas vêm para você. Assim eu  não estaria recebendo a caridade de suas mãos.” O homem rico então lhe disse: “Nesse caso, nunca haverá uma pessoa capaz de satisfazer os seus desejos.”56

Esse ressentimento pelos presentes foi bem observado em pesquisa conduzida por El- Alayli e Lawrence A. Messe, da Michigan State University. Suas descobertas, publicadas no Journal of Experimental Social Psychology, dizem que, receber favores não esperados leva as pessoas a experimentarem duas emoções opostas: o desejo de retribuir o favor, que os pesquisadores corretamente descreveram como “obrigação”, ou o ressentimento, ao qual se referiram como “reação psicológica”57.

Além disso, escreveram: “A avaliação dos participantes acerca do supervisor (benfeitor) sugeriu que as pessoas têm impressões distintas acerca de quem fez os favores que violavam (excediam) as expectativas ou normas”58. Essa pesquisa claramente demonstra que é natural do ser humano sentir vergonha ou ficar constrangido quando tratado com excepcional generosidade. Essas emoções, a Cabalá explica, estão diretamente enraizadas na vergonha que o Estágio Quatro experimenta, quando se depara com a doação ilimitada sem ter a chance de se tornar um doador também.

Assim, quando o Estágio Quatro percebe que não pode obter a primazia  da  Raiz, percebe que não pode receber tudo e que é inerentemente inferior a seu criador. Isso instantaneamente extingue qualquer sensação de prazer no Estágio Quatro e, apesar da infinita abundância que a Raiz fornece, o Estágio Quatro permanece com um sentimento de vazio, já que seu maior desejo não lhe foi concedido. Em Cabalá, quando o desejo do Estágio Quatro de ser igual a seu criador ofusca todos os outros prazeres, isso  é chamado “restrição”. Como o desejo de ser igual ao Criador é muito maior do que os outros desejos, isso praticamente impede que o prazer seja experimentado.

Daqui para frente, a evolução se desdobra em um único e profundo propósito: possuir novamente a abundância que a Raiz deseja doar e que pode ser recebida apenas com a intenção de doar.

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